segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Análise do resultado do FX-2: A decisão do Gripen NG como escolha pela autonomia tecnológica e estratégica

Gripen NG: a decisão pela autonomia tecnológica e estratégica

Lucas Kerr Oliveira, Giovana E. Zucatto, Bruno Gomes Guimarães, Pedro V. Brites, Bruna C. Jaeger

Na última quarta-feira, 18 de dezembro, o ministro da Defesa Celso Amorim e o Comandante da Força Aérea Brasileira, Juniti Sato, anunciaram a compra de 36 aeronaves Gripen NG (New Generation) da empresa sueca Saab, pondo fim à licitação FX-2. A escolha do caça vai ao encontro das indicações da Estratégia Nacional de Defesa (END), de unir capacidades críveis ao desenvolvimento da indústria nacional – e regional – de defesa. Produz, ainda, sinergia entre a área de Defesa e de Política Externa, na medida em que corrobora com a estratégia de inserção internacional mais autônoma que o Brasil vem buscando em meio ao processo de consolidação geopolítica da Integração Regional Sul-Americana e de estabilização de um mundo Multipolar.

Gripen. Foto: Saab
Foto: Saab.


A licitação do programa FX-2 tem suas origens em um projeto anterior, o FX, originado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso para a aquisição de caças de quarta geração a fim de substituir os Mirage III. Essa primeira licitação previa um investimento de cerca de US$ 700 milhões, mas a decisão foi adiada por causa de imbróglios políticos e econômicos. Em 2006, o governo Lula lançou o programa FX-2, bem mais ambicioso que sua versão anterior, ao prever investimentos na casa dos 5 bilhões de dólares para a compra de caças mais avançados (4ª geração “plus”, também chamado de 4,5ª geração), além de ter como uma das principais exigências a transferência de tecnologia para o país. No mesmo ano, foi anunciada a compra de caças usados Mirage-2000, em caráter emergencial para ocupar o espaço que viria a ser suprido pelas aeronaves do FX-2. No ano de 2008, a FAB anunciou as aeronaves finalistas da licitação: o F/A F-18 Super Hornet da Boeing, o Rafale F3 da Dassault e o JAS-39 Gripen NG da Saab.

Gripen NG
Foto: Saab.

O anúncio da escolha de um vencedor da licitação, a poucos dias do fim do uso dos caças Mirage 2000, que param de voar em 31 de dezembro, surpreendeu a todos. Desde 2008, a incógnita sobre qual, dentre os três finalistas, seria a mais nova aeronave a compor os quadros da FAB, se mantinha envolta em controvérsias.

Durante o governo Lula, o preferido era o Rafale F3, dadas as aproximações estratégicas com a França na área de defesa e que resultaram no acordo para a construção de submarinos convencionais e nucleares para a Marinha do Brasil (BRASIL, 2007). Entretanto a postura militarista (e mesmo neoimperialista) da França após a crise de 2008 parece ter sido o principal fator que inviabilizou a escolha do Rafale. Historicamente o Brasil tem sido um forte defensor da soberania dos povos e declaradamente contrário à intervenção em assuntos internos dos países, especialmente dos países periféricos. Em contraste, a França realizou uma série de intervenções armadas e invasões diretas em países periféricos desde 2008, que desagradaram tradição pacifista da diplomacia brasileira, como a intervenção na Costa do Marfim em 2011, passando pela agressiva postura da França no caso da invasão da Líbia no mesmo ano (SILVA; OLIVEIRA; DIALLO, 2001; FERNANDES; DIALLO; GARCIA, 2012; VIZENTINI, 2012).

Mais recentemente, a posição da França de defender incondicionalmente uma intervenção militar contra o governo da Síria, bem como a liderança do país em operações no Mali e na República Centro-Africana, mais uma vez se chocaram com a postura brasileira, que defende soluções pacíficas, multilaterais, não intervencionistas e negociadas para os conflitos. Em alguns momentos, a França chegou a tentar minar deliberadamente os esforços diplomáticos do Brasil para a obtenção de acordos que evitassem acirramento de tensões e viabilizassem soluções pacíficas, como no caso do Irã . Tais episódios fortaleceram as desconfianças do Brasil em relação ao crescente militarismo francês, reforçando as ressalvas diplomáticas brasileiras a uma nova parceria estratégica que envolvesse a aquisição de mais sistemas de armas daquele país.

Em 2009, a FAB e a Embraer emitiram pareceres de apoio ao Gripen NG, entretanto, tais notas pareceram na ocasião não ter provocado maiores repercussões junto ao governo brasileiro. Em 2012, a Suiça, outro país neutro em meio às históricas disputas do continente europeu, encomendou 22 unidades do Gripen JAS 39E. Isso pareceu indicar que a parceria com a SAAB poderia realmente auferir maior autonomia estratégica e geopolítica a um país como o Brasil.

A partir de 2011, no governo Dilma Rousseff, as negociações com os EUA foram retomadas e alguns aspectos das negociações realmente pareciam indicar uma possível escolha do F-18 Super Hornet. Entretanto, a estratégia dos neoconservadores estadunidenses de tentar barrar a construção de um mundo multipolar, sabotando a emergência de novos pólos regionais, tem sido interpretada como uma opção militarista e ofensiva que ameaça os interesses de longo prazo do Brasil. Na última década, a continuidade da posição estadunidense de ampliar a presença militar na América do Sul e no Atlântico Sul, desagradou muito profundamente o Brasil. Isso se deu, em um primeiro momento, com a tentativa dos EUA de ampliar a presença militar na Colômbia e no Peru. A percepção de ameaça brasileira se avultou ainda mais após a recriação da IV Frota estadunidense em 2008, que teria ampla capacidade para atuar em todo o Atlântico Sul, podendo inclusive ameaçar o Pré-Sal brasileiro com facilidade. Essa situação tornou-se progressivamente crítica após o explícito apoio dos Estados Unidos ao golpe que derrubou o Presidente Lugo no Paraguai, um aliado estratégico do Brasil, em 2012; tal apoio foi seguido da retomada das negociações para a instalação de uma base estadunidense no chaco paraguaio, próximo de uma região onde já existe um movimento insurgente guerrilheiro declaradamente anti-Brasil. Considerando o nível de ameaça que tal postura dos EUA representa para o principal projeto geopolítico e estratégico do Brasil na atualidade, a Integração Regional Sul-Americana, tudo indica que o F-18 havia se tornado uma aquisição politicamente inviável. Entretanto, tal situação só se tornaria pública com os recentes escândalos de espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, sigla em inglês) contra o governo brasileiro, pois até mesmo os poucos militares que ainda apoiavam a escolha da aeronave estadunidense viram-se em uma posição insustentável.

Por fim, a recente visita de François Hollande – acompanhado do presidente da Dassault – ao Brasil, em dezembro de 2013, pareceu indicar para alguns analistas que o Rafale F3 estaria de volta e poderia ainda ter alguma chance na concorrência. Contudo, a medida se assemelha antes a uma última e desesperada tentativa da França de reverter uma decisão já consolidada pelo governo brasileiro.

Foi nesse contexto que, no dia 18 de dezembro deste ano, o Ministro da Defesa Celso Amorim tornou pública a decisão de que o Gripen NG da sueca Saab será o novo caça brasileiro. Uma decisão histórica e que pode ser considerada estrategicamente acertada por diversos motivos políticos, econômicos, tecnológicos, tático-operacionais e estratégicos.

Celso Amorim anuncia compra de caças Suecos Gripen NG
Foto: Valter Campanato / Agência Brasil.

Em termos tático-operacionais, importa destacar que o Gripen NG é uma aeronave que atende bem às necessidades de defesa brasileiras. Trata-se de um caça supersônico multiemprego, com capacidade de decolar com carga máxima de 16,5 toneladas, bem menos que seus concorrentes. Contudo, sendo mais leve e com capacidade para até sete toneladas de combustível, o avião tem 1.300 km de raio de combate plenamente armado e alcance máximo de 4.000 km, o que é central para um país de dimensões continentais como o Brasil. É fundamental que a aeronave principal da FAB tenha alcance para sair do Planalto Central e alcançar rapidamente a Amazônia ou a zona do Pré-Sal, ou que do litoral brasileiro possa ameaçar diretamente uma frota inimiga estacionada no meio do Atlântico Sul, mesmo que necessite de reabastecimento em voo na volta.

Gripen lançando míssil - foto SAAB
Gripen lançando míssil. Foto: Saab.

Com capacidade para transportar até 7,2 toneladas de armas, o caça pode levar mísseis antinavio, assim como bombas de grande porte para ataque a alvos em terra e no mar. Com apenas uma turbina, o Gripen consome menos combustível e sua manutenção se torna mais rápida e econômica, sendo que a troca da turbina pode ser feita em menos de uma hora em situações de urgência.

Sistemas de armas multipropósito do Gripen NG - fonte SAAB
Fonte: Saab.

Apontada por alguns como uma desvantagem, o avião sueco não possui a capacidade de lançar armas nucleares. Entretanto, para o Brasil isto não representa um problema, pois o país não dispõe de tal capacidade devido aos compromissos assumidos pelo país de não desenvolvimento de artefatos nucleares, desde a assinatura do TNP, mas principalmente, devido à estratégia pacifista adotada pelo país para sua inserção internacional.

O Gripen conta ainda com outras inovações tecnológicas de última geração, como recurso de Guerra Centrada em Rede (NCW) que operará em combinação com o sistema E-99 Erieye (SAAB, 2011), dos aviões EMB-145 AEW&C (Airborne Early Warning and Control) de vigilância antecipada e controle da FAB, fabricados pela Embraer.

O Gripen possui outras vantagens técnicas, como o fato de ser considerada a mais ágil e manobrável aeronave de caça para combates aéreos de curtas distâncias que se encontra disponível atualmente no mercado aeronáutico internacional. O Gripen NG apresenta, ainda, a característica de ser mais barato tanto no custo unitário que os concorrentes (cerca de 125 milhões de dólares até 2023), quanto no custo por hora de voo, apenas 4 mil dólares. Isto é muito importante para garantir que os custos de manutenção e horas de voo do avião não consumam parcelas significativas do orçamento da FAB, dificultando, por exemplo, o desenvolvimento de novas gerações de caças a partir do NG.

Outro ponto positivo do caça é a sua capacidade de pouso em pistas curtas: o caça consegue pousar em pistas bem pequenas, de apenas 500 metros, o que facilita a utilização de uma grande diversidade de bases para abastecimento e reparos durante operações, inclusive pistas curtas existentes na Amazônia. O plano das FAB é distribuir os caças por diversas bases no Brasil, diminuindo a vulnerabilidade e aumentando a capacidade operacional em diversos possíveis teatros de combate, ampliando significativamente a capacidade de defesa do espaço aéreo nacional.

Gripen decolando - foto: Liander
Foto: Liander / Saab.

Modelos anteriores do Gripen já voam na Suécia, África do Sul, Tailândia, República Tcheca e Suíça. O “Gripen NG BR”, por outro lado, será desenvolvido em parceria entre a Saab e a Embraer, que participará da produção da aeronave, na qual até 40% das novas tecnologias empregadas poderá ser desenvolvida e fabricada nacionalmente.
“Uma grande parte do trabalho de desenvolvimento do Gripen NG será de responsabilidade da indústria brasileira. A tecnologia e os componentes do Gripen NG produzidos no Brasil não serão replicados em nenhum outro lugar do mundo, o que significa que os sistemas Gripen NG fabricados no Brasil serão instalados em cada novo caça Gripen NG a ser fabricado para todos os futuros clientes, inclusive a Suécia.”. (SAAB, 2010, p. 5)
Fica claro, portanto, que o grande trunfo do Gripen está na disposição da Suécia em transferir tecnologias sensíveis e desenvolvê-las conjuntamente com o Brasil, uma variável considerada determinante pelo país desde a publicação da Estratégia Nacional de Defesa pelo governo Lula, em 2008 e expressos no Livro Branco de Defesa Nacional de 2012 (BRASIL, 2008a; 2008b; 2012).
1. New avionics concept: safety critical and mission functions are separated from each other. This allows mission functions to be upgraded rapidly without having to re-test safety critical functions. In addition, modularisation enables integration of customer programmes and software. Extensive growth potential in computer capacity. Using off the shelf components from third party suppliers reduces the risk of the system becoming obsolete, and ensures costs are kept low.  2. Additional internal fuel tanks: increases range, gives the ability to remain in the air for longer, and allows the aircraft to carry more external weapons and stores.  3.  Air-air refueling probe.  4. A wider and longer body with the landing gear placed further out: allows the aircraft to carry more stores under the fuselage. Enhances air-to-air combat in particular.  5. Human-machine interface: gives the pilot extremely good situation awareness, and also helps in analyzing the tactical situation and the possible lines of action, thereby supporting the pilot’s decision making.  6. Ten external hardpoints: for carrying air-to-air and air-to-surface weapons, additional fuel tanks, surveillance pods and targeting pods.  7. Powerful engine – General Electric’s F414G: the same as used by the F/A-18 Super Hornet.  8. Latest generation Active Electronically Scanned Array (AESA) radar system produced by Selex Galileo: with an upgraded ability to follow different targets, it provides a higher range and angle coverage and is more resistant to disruptive enemy action.  9. Passive infrared search and track system (IRST): can detect targets by their heat  signature, allowing Gripen to attain early situation awareness without emitting its own radar energy.  10. Comprehensive electronic warfare self-defence system.
Principais componentes do Gripen E. Ilustração: Saab.

Saab Gripen Brasil
Ilustração: Saab.

Enquanto o Rafale F3 e F-18 Super Hornet – que apresentavam propostas de transferência de tecnologia limitadas – são modelos prontos, o Gripen tem a possibilidade de ser adaptado às exigências brasileiras, pois ainda está em fase de desenvolvimento. Isso importa especialmente porque o Gripen precisará cobrir grandes distâncias – como demanda uma aeronave a operar no território ou nas águas jurisdicionais brasileiras e importa para que possa lançar mísseis desenvolvidos no Brasil. Embora o atual modelo não seja capaz de ser embarcado em porta-aviões, a Saab já está a desenvolver uma proposta inicial para uma versão naval do caça, que pode vir a ser desenvolvida nos próximos anos para atender às demandas da Índia por uma aeronave desse modelo.

Projeto inicial do Sea Gripen exibido na LAAD 2013 - foto: SAAB
Projeto inicial do Sea Gripen exibido na LAAD 2013. Foto: Saab.

Além disso, a Saab estuda a possibilidade de financiar a compra dos caças: o governo brasileiro só começaria a pagar em 2023, quando as 36 aeronaves já tiverem sido entregues. Considerando que esse número pode ser aumentado para até 100 caças, caso seu desempenho mostre-se satisfatório ao governo brasileiro, tais negociações podem se mostrar uma das mais importantes da atual década no mercado de aeronaves mundial.

Contudo, enquanto as novas aeronaves encomendadas estiverem sendo fabricadas, o Brasil tem um problema de curto prazo a ser resolvido que é a aquisição de uma aeronave moderna especificamente para defender a capital, função até então desempenhada pelo obsoleto Mirage 2000. No longo prazo, o objetivo estratégico de assegurar a superioridade aérea em território nacional não poderá continuar dependendo apenas da disponibilidade de uma aeronave tecnologicamente superior. Para garantir a superioridade aérea e o poder de dissuasão do país, é necessário garantir uma rede de sistemas de sistemas combate, além dos sistemas de detecção, guiagem, comando e controle. Isso significa que em um futuro muito próximo será crítica a posse de satélites de detecção e guiagem, de radares de arranjo fásico de longo alcance, sistemas de mísseis antiaéreos de curto, médio e, especialmente, de longo alcance, mísseis antimísseis para proteger a capital e as maiores metrópoles e infraestruturas críticas do país, e, inclusive, aeronaves de última geração fabricadas no país. Isso significa que um dos próximos desafios do país é começar a planejar o desenvolvimento de uma aeronave de quinta geração, que poderá ser desenvolvida à partir da tecnologia do próprio Gripen, mas necessitará de mais parceiros para se tornar uma realidade.

Enquanto isso, o país tem diferentes opções de curto prazo, como adquirir modelos anteriores do Gripen, ou outros modelos de aeronaves, inclusive de outras nacionalidades. A princípio a primeira alternativa parece a mais provável, pois o governo sueco já manifestou a possibilidade de envio de aeronaves da geração atual, como Gripen C/D, para suprir o vácuo que existirá até 2018, quando estima-se que os primeiros Gripen NG entrarão em serviço (CHAGAS, 2013). Esta possibilidade abriria espaço para permitir a aquisição de conhecimento técnico e tático sobre esta família de aeronaves enquanto o Gripen NG está sendo fabricado. Tal negociação deve ser finalizada em 2014, caso os suecos confirmem a intenção de adquirir cerca de 10 KC- 390 fabricados pela Embraer, para substituir os Hércules suecos. Caso não se concretize, a outra opção, da aquisição rápida de aeronaves usadas para uso imediato, de outra nacionalidade e em quantidade reduzida, pode se mostrar necessária.

Destarte, importa ressaltar que a instalação da linha de produção de parte do Gripen no Brasil será um impulso fundamental para a construção da Base Industrial de Defesa nacional: a indústria aeronáutica terá um novo fôlego, atuando como mais um vetor para a criação de empregos técnicos de alta qualificação e para a geração de renda no país. Além da estrutura do avião, diversas partes do Gripen NG serão fabricadas pela indústria brasileira, e não serão replicados em nenhum outro lugar do mundo. Assim, os sistemas e componentes fabricados no Brasil serão instalados em todos os Gripen NG vendidos pela Saab, inclusive para a Força Aérea da Suécia. Além da Embraer já estão confirmadas a participação das empresas brasileiras Aeroeletrônica, Akaer, Atech, INBRA e Mectron, na fabricação de componentes do Gripen NG.

Peças da fuselagem central e da asa do Gripen-NG que serão fabricadas pela empresa brasileira Akaer
Peças da fuselagem central e da asa do Gripen-NG que serão fabricadas pela empresa brasileira Akaer. Fonte: Akaer / Divulgação.
 
Na perspectiva mais otimista, a parceria Brasil-Suécia pode vir a resultar em processos de aquisições acionárias e até em uma fusão parcial entre a Embraer e a Saab. Considerando que a Suécia demonstra intenções de desenvolver turbinas aeronáuticas novas a partir das turbinas licenciadas atualmente produzidas pela sueca Volvo, tal parceria pode viabilizar o tão sonhado projeto brasileiro de fabricar suas próprias turbinas de grande potência. Principalmente porque a aquisição por outros países pode viabilizar, finalmente, a escala necessária pra tal empreendimento, e tanto Brasil como Suécia ganhariam em autonomia tecnológica e estratégica.
 
Ainda, o Brasil terá a possibilidade de vender estas aeronaves de quarta geração para os países da UNASUL e, possivelmente, outros países emergentes, pois o acordo prevê explicitamente a reserva de certos mercados ao Brasil. No primeiro caso, pensando-se na integração das cadeias produtivas sul-americanas, é factível ponderar que no processo de desenvolvimento de uma Indústria de Defesa Sul-Americana, desde a industrialização de matérias-primas críticas, até a produção de componentes, possam vir a ser desenvolvidos conjuntamente com outros parceiros estratégicos do Brasil, como a Argentina. Isto pode favorecer a produção e venda desta aeronave em diferentes mercados em um futuro próximo. Considerando, ainda, o caso dos países emergentes, importa destacar que, entre os BRICS, temos países como a África do Sul, que já possui aeronaves Gripen, e que desenvolve em parceria com o Brasil no desenvolvimento dos mísseis ar-ar A-Darter, que serão utilizados tanto em seus caças quanto nos caças brasileiros.
 
Gripen E. foto: Saab
Fonte: Saab.
 
Em relação ao desafio tecnológico de desenvolver uma aeronave de quinta geração, sem a dependência tecnológica das grandes potências tradicionais, fica claro que a parceria estratégica com a Suécia abre novas perspectivas geopolíticas para o Brasil. O Gripen NG está em fase de desenvolvimento, que será um processo completado conjuntamente entre Suécia e Brasil. O desafio de incorporar, dominar e desenvolver tecnologias aeronáuticas do Gripen NG representam apenas o primeiro passo para iniciar o desenvolvimento de aeronaves ainda mais modernas no futuro. Considerando os problemas de escala de produção e de incorporação de tecnologias, uma aeronave de quinta geração só se tornará viável caso o Brasil e a Suécia consigam outros parceiros entre os países emergentes, como Coreia do Sul, Turquia, África do Sul ou mesmo países da América do Sul, como a Argentina. Nesse cenário se tornaria interessante aprofundar a parceria Brasil-Argentina, e considerar seriamente que o desenvolvimento de um avião de quinta geração dos emergentes pode ter como mercado, além dos países mencionados, o conjunto dos países da UNASUL.

Neste contexto, o desafio político diplomático que se impõe ao Brasil é o de liderar uma coalizão de países emergentes capazes de construir uma aeronave de quinta geração sem a dependência das grandes potências.  Ao menos teoricamente, bastaria que tal coalizão de países emergentes incluísse parceiros com interesses comuns de longo prazo, especialmente países emergentes favoráveis à resolução pacífica de conflitos regionais e defensores da consolidação da multipolaridade, que, em conjunto sejam detentores de tecnologias complementares e com capacidade de compra de aeronaves, como são os citados casos da África do Sul, Argentina, Coreia do Sul, Turquia e Suécia.

Dessa forma, a decisão anunciada no dia 18 de dezembro – que não por acaso é quando se comemora o dia da aviação de caça no Brasil – é um marco na política de defesa brasileira, pois aumenta a perspectiva de desenvolvimento de nossas capacidades dissuasórias e de desenvolvimento industrial-tecnológico. Mostra-se, ainda, um importante passo na diversificação das parcerias estratégicas do país, consolidando a busca por uma inserção internacional mais autônoma e soberana. A escolha do Gripen demonstra ser especialmente acertada para o Brasil devido ao elevado potencial para produzir sinergia com os principais objetivos estratégicos do país, o desenvolvimento tecnológico e industrial, o aprofundamento da Integração Regional Sul-Americana e a construção de um mundo multipolar.

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Referências:

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BRASIL (2007). Decreto nº 6.011, de 5 de janeiro de 2007. Promulga o Acordo para Cooperação na Área da Aeronáutica Militar entre o Governo da República Federativa do Brasil e a República Francesa, celebrado em Paris, em 15 de julho de 2005. Presidência da República. Brasília, 2007. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6011.htm>

BRASIL (2008). Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Aprova a Estratégia Nacional de Defesa, e dá outras providências. Presidência da República. Brasília, DF.

BRASIL (2008). Estratégia Nacional de Defesa. Ministério da Defesa, Secretaria de Assuntos Estratégicos. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.sae.gov.br/site/wp-content/uploads/Estrat%C3%A9gia-Nacional-de-Defesa.pdf>.

BRASIL (2012). Livro Branco de Defesa Nacional. Ministério da Defesa.  Disponível em: <https://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/lbdn.pdf>.

CHAGAS, Paulo  Victor (2013). Brasil negocia com Suécia cessão antecipada de caças. Agência Brasil, 20 de dezembro de 2013. Agência Brasileira de Comunica,ção, EBC. Brasília, DF. <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-12-20/brasil-negocia-com-suecia-cessao-antecipada-de-cacas>.

FERNANDES, Lito Nunes; DIALLO, Mamadou Alpha; GARCIA, Maria Lorena Allende (2012). Conflito na Líbia: Uma análise crítica do intervencionismo ocidental pelo poder e recursos energéticos em nome da defesa da democracia. Pambazuka News, 03 de março de 2012, ed. 41. <http://www.pambazuka.org/pt/category/features/80407/print>.

GUIMARÃES, Samuel P. (2007). O mundo multipolar e a integração sul americana. Revista Comunicação & Política, v. 25, nº 3, p. 169-189. <http://www.cebela.org.br/imagens/Materia/04NCT02%20Samuel.pdf>

SAAB (2011). Gripen NG – Tecnologia independente para o Brasil. Saab Group.  Portal da SAAB, Publicações da SAAB,  Fact sheets. <http://www.saabgroup.com/Global/Documents%20and%20Images/Air/ Gripen/Gripen%20segment%20solution/Gripen_factsheet_Brazil_V2.pdf>

SAAB (2010). Gripen Brasil: nascido para voar.  Saab Group. Portal da SAAB,  Gripen campaign sites. Gripen para o Brasil.   <http://www.saabgroup.com/Global/Documents%20and%20Images/Air/ Gripen/Gripen%20for%20Brazil/GRIPEN_Brazil_Nascido_Para_Voar_portug.pdf>

SAAB (s.d.). O Gripen para o Brasil: A aeronave de combate mais avançada do mundo.  Portal da SAAB,  Gripen campaign sites.  O Gripen para o Brasil.   <http://www.saabgroup.com/pt/Air/Gripen-Fighter-System/Gripen-Para-o-Brasil/O-Caca-Gripen-NG/> Acesso: Dezembro/2013

SAAB (s.d.). O Gripen para o Brasil: A aeronave de combate mais avançada do mundo.  Portal da SAAB,  Gripen campaign sites.  O Gripen para o Brasil, O Programa Gripen NG. <http://www.saabgroup.com/pt/Air/Gripen-Fighter-System/Gripen-Para-o-Brasil/O-Caca-Gripen-NG/O-Programa-Gripen-NG-/> Acesso: Dezembro/2013

OLIVEIRA, Lucas Kerr; SILVA, Igor Castellano; DIALLO, Mamadou Alpha (2011). A crise da Costa do Marfim: A desconstrução do Projeto Nacional e o Neo-Intervencionismo francês. Conjuntura Austral, v. 1, 2011. p. 1-30. <http://seer.ufrgs.br/ConjunturaAustral/article/view/20643/12059>

RIEDIGER, Bruna F. (2013). A posição brasileira frente ao conflito na Síria (2011-2013). Conjuntura Austral, Vol. 4, nº 20, Out.Nov/2013, p. 35-53. <http://seer.ufrgs.br/index.php/ConjunturaAustral/article/download/43390/27335&gt;>

VIDAL, Camila Feix (2013). O protagonismo brasileiro diante da declaração de Teerã. Conjuntura Austral, Vol. 4 , nº 18, Jun.Jul/2013, p. 41-61. <http://seer.ufrgs.br/index.php/ConjunturaAustral/article/download/37341/25971&gt;>

VISENTINI, Paulo G. F. (2012). A Primavera Árabe: entre a Democracia e a Geopolítica do Petróleo. Editora Leitura XXI: Porto Alegre, RS.

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Sobre os autores:

Lucas Kerr Oliveira é Professor Adjunto no curso de Relações Internacionais e Integração na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA, Doutor em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela Ufrgs, pesquisador colaborador do ISAPE. 
Giovana E. Zucatto é Graduanda em Relações Internacionais pela Ufrgs, pesquisadora associada do ISAPE. 
 
Bruno Gomes Guimarães é Mestrando em Relações Internacionais em programa conjunto da Universidade Livre de Berlim, da Universidade de Potsdam e da Universidade Humboldt, Bacharel em Relações Internacionais pela Ufrgs, pesquisador associado do ISAPE.

Pedro V. Brites é Mestrando em Estudos Estratégicos Internnacionais e Bacharel em Relações Internacionais pela Ufrgs, é Diretor Geral do ISAPE. 
Bruna C. Jaeger é Graduanda em Relações Internacionais pela Ufrgs, pesquisadora associada do ISAPE.


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Leia mais sobre o novo caça da FAB aqui: SAAB Gripen Handbook.



terça-feira, 15 de outubro de 2013

Começou o ciclo de palestras "Revoluções Coloridas: Golpes do Século XXI?" organizado pelo NERINT e pelo ISAPE em Porto Alegre, RS



Começou ontem o ciclo de palestras "Revoluções Coloridas: Golpes do Século XXI?" promovido pelo Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e pelo Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT-UFRGS).


No primeiro encontro, o prof. Nilo Piana de Castro e o prof. Dario Teixeira Ribeiro debateram as principais características que marcam os processos de mudanças políticas impulsionados pelos meios de comunicação e pela opinião pública. Para tanto, mostraram a evolução da publicidade e da propaganda como elementos fundamentais de sustentação e de mudanças políticas ao longo do século XX. Assim, as revoluções coloridas seriam caracterizadas pela condução de grupos estudantis, de organizações não-governamentais que se utilizam das ferramentas da imagem para cooptar a opinião pública e a partir disso iniciar um processo de mudança política. Outra característica básica seria a despolitização do movimento, a essência simplesmente moralista, com slogans fáceis (Contra corrupção, contra violência), sem a proposição de pautas construtivas.

Dessa forma, seriam movimentos que se diferem dos tradicionais golpes de estado ocorridos em meados do século XX, seja na América Latina, seja no Oriente Médio.

Hoje, serão discutidos os impactos desse fenômeno na Africa e Oriente Médio, processo que iniciou a partir da chamada primavera árabe, e na América Latina, quando governos tipicamente de esquerda, como o de Evo Morales e de Hugo Chavez, sofreram tentativas de golpe com forte apoio da opinião pública internacional e ONGs. Os palestrantes serão o prof. Dr. Paulo Fagundes Visentini (NERINT/PPGEEI/DERI-UFRGS) e o prof. Dr. Lucas Kerr de Oliveira (UNILA).

Revoluçoes de Cores - Golpes dp sec. XXI - Cartaz do Ciclo de Palestras - 2013As inscrições podem ser feitas no local, e o investimento é de apenas R$ 20,00 por dia.
O ciclo continua na quarta-feira, quando serão debatidas as manifestações no Brasil, com o prof, Dr. José Miguel Quedi Martins (PPGEEI/DERI-UFRGS) e o prof. Dr. Luís Gustavo Grohmann (PPGPOL-UFRGS).

O que? Ciclo de palestras "Revoluções Coloridas: Golpes do Século XXI?"
Quando? 15 e 16 de outubro, as 19h.
Onde? Auditório 1 da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO). Rua Ramiro Barcelos, 2705.
Investimento: R$ 20,00 por dia ou R$ 35,00 os dois últimos dias.

sábado, 5 de outubro de 2013

Ciclo de Palestras sobre as Revoluções de Cores: "Golpes do Século XXI?"

Ciclo de Palestras

" Revolução Coloridas: Golpes do Século XXI ? "


Datas: 14, 15 e 16 de outubro de 2013
Local: Auditório da FABICO (UFRGS)
Horário: 19h
Valor: R$ 40  todo o ciclo, ou R$ 20 cada encontro


Programação:


14 de outubro segunda-feira 19h

Abertura: Revolução Coloridas: Golpes do Século XXI?
Prof.ª Dra. Analúcia Danilevicz Pereira  (NERINT, DERI, PPGEEI/UFRGS)

Revoluções ou contra-revoluções coloridas? Papel dos meios de comunicação
Prof. Dr. Nilo Piana de Castro (Colégio Aplicação/UFRGS)

As Revoluções Coloridas no Espaço da ex-URSS e Leste-europeu 
Prof. Dr. Luiz Dario Ribeiro Teixeira (NERINT, Depto História/UFRGS)



15 de outubro terça-feira 19h

Os impactos das Revoluções Coloridas no Oriente Médio e na África
Prof. Dr. Paulo F. G. Visentini (NERINT, DERI, PPGEEI/UFRGS)

Os impactos das Revoluções Coloridas na América Latina
Prof. Dr. Lucas Kerr Oliveira (Relações Internacionais e Integração/UNILA)



16 de outubro quarta-feira 19h

As revoluções coloridas no Brasil: Os impactos das Manifestações
Prof. Dr. José Miguel Quedi Martins (DERI, PPGEEI/UFRGS)
Prof. Dr. Luís Gustavo Grohmann (PPGPol/UFRGS)



quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A guerra proxy na Síria e as disputas estratégicas russo-estadunidenses no Oriente Médio

Mundorama, 20/09/2013

A guerra proxy na Síria e as disputas estratégicas russo-estadunidenses no Oriente Médio

 Lucas Kerr Oliveira, Pedro V. P. Brites & João Arthur Silva Reis

O acordo entre Rússia e Estados Unidos para a destruição das armas químicas sírias, anunciado dia 14 de setembro, pode, ao menos por ora, impedir uma nova intervenção estadunidense no Oriente Médio. O arranjo estabelece que o regime de Bashar Al-Assad entregue seu arsenal químico para o controle internacional e que este seja destruído até a metade de 2014 (RiaNovosti, 2013). O acordo proposto pela Rússia em 09 de setembro arrefeceu a escalada da mobilização militar dos EUA. O sucesso da iniciativa diplomática russa, que em grande medida deve-se ao envio de uma esquadra com considerável poder de fogo no Mediterrâneo, pode ser considerado uma inflexão na situação regional. Ao impedir o ataque à Síria, foi freada uma tendência que se mantinha desde a queda de Kaddafi em 2011: o avanço quase sem resistência dos interesses dos EUA e de seus aliados no Oriente Médio.

A guerra na Síria teve início a partir de uma escalada de violência, que começou com os protestos de 2011, pouco depois do início da “Primavera Árabe”. A violência das manifestações aumentou progressivamente, com crescente número de mortos, à medida que rebeldes armados aproveitaram-se da situação para atacar o governo instituído. Importa destacar que a “oposição” é formada por diferentes facções de rebeldes, inclusive com rivalidades entre si. Enquanto algumas facções são essencialmente étnicas, como os curdos sírios, outras são formadas por grupos religiosos conservadores e fundamentalistas, além de grupos como o Exército Sírio Livre, que inclui desertores das forças armadas nacionais e recebem apoio turco. Bandos armados mais radicais, como a Al-Nusra, ligada à Al-Qaeda, recebem apoio saudita e inclui grandes contingentes de mercenários líbios e chechenos. Este é o principal indício de que realmente está em andamento uma guerra proxy de diversos atores, entre eles Arábia Saudita e Turquia, contra a Síria.

Os Estados Unidos adotaram, desde o princípio, uma postura de condenação ao regime sírio e apoio aos rebeldes. Entretanto, apesar do suporte dado pela OTAN e pela CIA aos rebeldes – via Turquia e Jordânia –, os EUA não conseguiram obter a renúncia ou a capitulação do regime de Assad (Lubold, 2013). Entretanto, em 2012, Obama afirmou que os EUA só interviriam na Síria se o regime de Assad ultrapassasse o que ele chamou de “linha vermelha”, ou seja, utilizasse armas químicas ou biológicas.

Após o incidente de 21 de agosto, em que ocorreu o uso de armas químicas, o governo americano declarou que iria intervir militarmente na Síria, à revelia do Conselho de Segurança da ONU, mesmo que a comissão das Nações Unidas não tenha conseguido identificar o autor dos ataques (ONU, 2013), O Presidente americano, porém, transferiu para o Congresso a responsabilidade final de aprovar ou não a intervenção, que, a princípio, seria uma ação limitada, restrita a alvos específicos. Apesar do apoio incondicional da França, o veto do parlamento britânico à intervenção representou um revés significativo para a estratégia dos EUA. Além disso, na cúpula do G-20 em São Petersburgo ficou evidente o relativo isolamento americano, já que boa parte dos países presentes se opôs à ação militar.

Nesse contexto, a posição russa foi a mais assertiva. O anuncio do envio de navios do Mar Negro, do Norte e do Pacífico para o Mediterrâneo leste, foi um claro sinal de que a Rússia não toleraria um ataque à Síria, tradicional aliado do país. Em 11 de setembro, havia 8 navios russos na região, enquanto os EUA, por sua vez, contavam com 6 vasos de superfície, além de uma série de bases aéreas e navais no entorno. Apesar da evidente assimetria logística em favor dos Estados Unidos, não há grande discrepância na capacidade destrutiva mútua das duas esquadras. Trata-se de uma correlação surpreendente, dada a superioridade técnica da marinha estadunidense. Esse relativo equilíbrio de forças demonstra que o projeto da US Navy, ainda da década de 1990, de privilegiar a capacidade de ataque à terra, deixou-a relativamente vulnerável diante de outra marinha de guerra (Martins, 2013). Portanto, a presença da marinha russa no Mediterrâneo não teve caráter meramente simbólico, mas sim de dissuasão efetiva, ao demonstrar a possibilidade de escalada do conflito em caso de intervenção americana.

A presença das marinhas americana e russa na região reflete a importância geoestratégica do Oriente Médio para os dois países. Os múltiplos interesses estadunidenses na região incluem, principalmente, o controle geopolítico do petróleo e a defesa de seus aliados regionais. Nas duas últimas décadas ganhou força o projeto neoconservador de remodelar o mapa do Grande Oriente Médio em bases étnico-religiosas (Peters, 2006). A iniciativa de fragmentar a maior parte dos Estados Nacionais da região através de uma guerra permanente, tudo indica, começou com a balcanização do Iraque, Líbia e Síria, sendo o Irã um dos possíveis próximos alvos. Tal projeto aproxima os interesses dos neocons estadunidenses aos dos wahhabitas sauditas, que declaram a pretensão de liderar um grande califado regional petroexportador de maioria sunita, capaz de competir com o petróleo russo. Para isso, seria preciso viabilizar uma nova rede de oleodutos alternativa ao escoamento através do Estreito de Ormuz, sob a liderança saudita.

Para a Rússia é fundamental sustentar o equilíbrio de poder no Oriente Médio, mantendo os únicos aliados que lhe restaram na região, o Irã e a Síria, onde se localiza o Porto de Tartus, a única base naval russa de águas quentes fora de seu território. A possível balcanização destes aliados não ameaça apenas os interesses russos na região, mas influencia diretamente na estabilidade do Cáucaso. Principalmente porque há muitos chechenos entre as forças rebeldes sírias, o que fortalece o movimento separatista na Chechênia e Daguestão, um claro problema de segurança nacional para a Rússia. Portanto, da perspectiva russa, combater os rebeldes sírios seria uma forma de enfraquecer os radicais chechenos baseados no exterior (Hill, 2013). Assim, compreende-se que a oposição russa à intervenção dos EUA tem motivações mais profundas do que a simples defesa de um regime aliado.

Cabe destacar que a resolução da guerra na Síria ainda parece bastante distante. Mesmo se o acordo para a retirada das armas químicas se efetivar, isso não garante a estabilização do país e nem previne uma nova futura escalada das tensões entre as potências extrarregionais. Além disso, a evolução da crise na Síria será vital para o jogo político doméstico nos Estados Unidos. Após endurecer a retórica, a despeito da oposição da opinião pública à intervenção, o governo Obama teve de recuar diante da proposta do governo Putin, o que pode emparedar ainda mais o governo democrata. Nesse sentido, as disputas internas sobre o projeto americano para o Oriente Médio, bem como a reação de Rússia e China, parecem ensejar uma instabilidade ainda maior na região nos próximos anos.

Referências Bibliográficas
BINNIE, Jeremy (2013). “Syrian militant group swears allegiance to Al-Qaeda”. IHS Jane’s Defence Weekly, 10 de abril de 2013. <http://www.janes.com/article/11900/syrian-militant-group-swears-allegiance-to-al-qaeda>Acesso em 16 de setembro de 2013.

HILL, Fiona (2013). “The Real Reason Putin Supports Assad”. Foreign Affairs, 25 de março de 2013. <http://www.foreignaffairs.com/articles/139079/fiona-hill/the-real-reason-putin-supports-assad> Acesso em 16 de setembro de 2013.

LUBOLD, Gordon (2013). “Is Anyone In Charge Of U.S. Syria Policy?” Foreign Policy, 20 de junho de 2013. <http://www.foreignpolicy.com/articles/2013/06/20/who_is_in_charge_of_us_syria_policy>Acesso em 16 de setembro de 2013.

MARTINS, José M. Q. (2013). Painel Síria: Escalada ou Reequilíbrio? Apresentação realizada em 12 de setembro de 2013. FCE, Ufrgs, Porto Alegre, RS.

ONU (2013). Report on the Alleged Use of Chemical Weapons in the Ghouta Area of Damascus on 21 August 2013. United Nations Mission to Investigate Allegations of the Use of Chemical Weapons in the Syrian Arab Republic. Organização das Nações Unidas. <http://www.un.org/disarmament/content/slideshow/Secretary_General_Report_of_CW_Investigation.pdf> Acesso em 17 de setembro de 2013.

PETERS, Ralph (2006). “Blood borders: How a better Middle East would look”. Armed Forces Journal, Junho de 2006. <http://armedforcesjournal.com/archive/issue/2006/06/toc> Acesso em 15 de setembro de 2013.

RIA Novosti (2013). Russia, US Agree Syria Chemical Weapons Deal in Geneva. RIA Novosti, 14 de setembro de 2013. <http://en.rian.ru/russia/20130914/183438364/Russia-US-Agree-Syria-Chemical-Weapons-Deal-in-Geneva.html> Acesso em 16 de setembro de 2013.
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Lucas Kerr de Oliveira é professor e coordenador do curso de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA. Doutor em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Pedro Vinícius Pereira Brites é Diretor-Geral do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia – ISAPE. Mestrando em Estudos Estratégicos Internacionais e Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
João Arthur da Silva Reis é Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pesquisador colaborador do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo – CEGOV-UFRGS e do ISAPE.

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Fonte:

KERR-OLIVEIRA, Lucas; BRITES, Pedro V. P. & REIS, João A. S. (2013). A guerra proxy na Síria e as disputas estratégicas russo-estadunidenses no Oriente Médio. Mundorama, 20/09/2013. Mundorama, Divulgação Científica em Relações Internacionais, ISSN 2175-2052. <http://mundorama.net/2013/09/20/a-guerra-proxy-na-siria-e-as-disputas-estrategicas-russo-estadunidenses-no-oriente-medio-por-lucas-kerr-de-oliveira-pedro-vinicius-pereira-brites-e-joao-arthur-da-silva-reis/

sábado, 7 de setembro de 2013

Revoluções espontâneas ou Golpes Midiáticos? As Revoluções de Cores pró-EUA como golpes midiáticos do século XXI

Pública, 18/06/2012

Revolução à americana 


Por Natalia Viana
No canto superior do documento, um punho cerrado estampa a marca da organização. No corpo do texto lê-se: “Há uma tendência presidencialista forte na Venezuela. Como podemos mudar isso? Como podemos trabalhar isso?”. Mais abaixo, o leitor encontra as seguintes frases: “Economia: o petróleo é da Venezuela, não do governo. É o seu dinheiro, é o seu direito… A mensagem precisa ser adaptada para os jovens, não só para estudantes universitários… E as mães, o que querem? Controle da lei, a polícia agindo sob autoridades locais. Nós iremos prover os recursos necessários para isso”.

O texto não está em espanhol nem foi escrito por algum membro da oposição venezuelana; escrito em inglês, foi produzido por um grupo de jovens baseados em outro lado do mundo – na Sérvia.

O documento “Análise da situação na Venezuela, Janeiro de 2010”, produzido pela organização Canvas, cuja sede fica em Belgrado, está entre os documentos da empresa de inteligência Stratfor vazados pelo WikiLeaks.

O último vazamento do WikiLeaks – ao qual a Pública teve acesso – mostra que o fundador desta organização se correspondia sempre com os analistas da Stratfor, empresa que mistura jornalismo, análise política e métodos de espionagem para vender “análise de inteligência” a clientes que incluem corporações como a Lockheed Martin, Raytheon, Coca-Cola e Dow Chemical – para quem monitorava as atividades de ambientalistas que se opunham a elas – além da Marinha americana.

O Canvas (sigla em inglês para “centro para conflito e estratégias não-violentas”) foi fundado por dois líderes estudantis da Sérvia, que participaram da bem-sucedida revolta que derrubou o ditador Slobodan Milosevic em 2000. Durante dois anos, os estudantes organizaram protestos criativos, marchas e atos que acabaram desestabilizando o regime. Depois, juntaram o cabedal de conhecimento em manuais e começaram a dar aulas a grupos oposicionistas de diversos países sobre como se organizar para derrotar o governo. Foi assim que chegaram à Venezuela, onde começaram a treinar líderes da oposição em 2005. Em seu programa de TV, Hugo Chávez acusou o grupo de golpista e de estar a serviço dos Estados Unidos. “É o chamado golpe suave”, disse.

Os novos documentos analisados pela Pública mostram que se Chávez não estava totalmente certo – mas também não estava totalmente errado.

O começo, na Sérvia
“Foram dez anos de organização estudantil durante os anos 90”, diz Ivan Marovic, um dos estudantes que participaram dos protestos contra Milosevic, mas que não tem ligação com o grupo Canvas. “No final, o apoio do exterior finalmente veio. Seria bobo eu negar isso. Eles tiveram um papel importante na etapa final. Sim, os Estados Unidos deram dinheiro, mas todo mundo deu dinheiro: alemães, franceses, espanhóis, italianos. Todos estavam colaborando porque ninguém mais apoiava o Milosevic”, disse ele em entrevista à Pública.
“Dependendo do país, eles doavam de um determinado jeito. Os americanos têm um ‘braço’ formado por ONGs muito ativo no apoio a certos grupos, outros países como a Espanha não têm e nos apoiavam através do ministério do exterior”.  Entre as ONGs citadas por Marovic estão o National Endowment for Democracy (NED), uma organização financiada pelo congresso americano, a Freedom  House e o International Republican Institute, ligado ao partido republicano – ambos contam polpudos financiamentos da USAID, a agência de desenvolvimento americana que capitaneou movimentos golpistas na América Latina nos anos 60, inclusive no Brasil.

Todas essas ONGs são velhas conhecidas dos governos latinoamericanos, incluindo os mais recentes.

Foi o IRI, por exemplo, que ministrou “cursos de treinamento político” para 600 líderes da oposição haitiana na República Dominicana durante os anos de 2002 e 2003. O golpe contra Jean-Baptiste Aristide, presidente democraticamente eleito, aconteceu em 2004. Investigado pelo Congresso dos Estados Unidos, o IRI foi acusado de estar por trás de duas organizações que conspiraram para derrubar Aristide.  Na Venezuela, o NED enviou US$ 877 mil para grupos de oposição nos meses anteriores ao golpe de Estado fracassado em 2002, segundo revelou o New York Times. Na Bolívia, segundo documentos do governo americano obtidos pelo jornalista Jeremy Bigwood, parceiro da Pública, a USAID manteve um  “Escritório para Iniciativas de Transição”, que investiu US$ 97 milhões em projetos de “descentralização” e “autonomias regionais” desde 2002, fortalecendo os governos estaduais que se opõem a Evo Morales.
Procurado pela Pública, o líder do Canvas, Srdja Popovic, diz que a organização não recebe fundos governamentais de nenhum país e que seu maior financiador é o empresário sérvio Slobodan Djinovic, que também foi líder estudantil.
Porém, um PowerPoint de apresentação da organização, vazado pelo WikiLeaks, aponta como parceiros do Canvas o IRI e a Freedom House, que recebem vultosas quantias da USAID.

Para o pesquisador Mark Weisbrot, do instituto Center for Economic and Policy Research, de Washington, organizações como a IRI e Freedom House “não estão promovendo a democracia”. “Na maior parte do tempo, estão promovendo exatamente o oposto. Geralmente promovem as políticas americanas em outros países, e isto significa oposição a governos de esquerda, por exemplo, ou a governos dos quais os Estados Unidos não gostam”.

Fase dois: da Bolívia ao Egito 
Vista através do mesmo PowerPoint de apresentação, a atuação do Canvas impressiona. Entre 2002 e 2009, realizou 106 workshops, alcançando 1800 participantes de 59 países. Nem todos são desafetos americanos – o Canvas treinou ativistas por exemplo na Espanha, no Marrocos e no Azerbaijão – mas a lista inclui muitos deles: Cuba, Venezuela, Bolívia, Zimbabue, Bielorrussia, Coreia do Norte, Siria e Irã.

Segundo o próprio Canvas, sua atuação foi importante em todas as chamadas “revoluções coloridas” que se espalharam por ex-países da União Soviética nos anos 2000.

O documento aponta como “casos bem sucedidos” a transferência de conhecimento para o movimento Kmara em 2003 na Geórgia, grupo que lançou a Revolução Rosas e derrubou o presidente; uma ajudinha para a Revolução Laranja, em 2004, na Ucrânia; treinamento de grupos que fizeram a Revolução dos Cedros em 2005, no Líbano; diversos projetos com ONGs no Zimbabue e a coalizão de oposição a Robert Mugabe; treinamento de ativistas do Vietnã, Tibete e Burma, além de projetos na Síria e no Iraque com “grupos pró-democracia”. E, na Bolívia, “preparação das eleições de 2009 com grupos de Santa Cruz” – conhecidos como o mais ferrenho grupo de adversários de Evo Morales.

Até 2009, o principal manual do grupo, “Luta não violenta – 50 pontos cruciais” já havia sido traduzido para 5 línguas, incluindo o árabe e o farsi.

Um das ações do Canvas que ganhou maior visibilidade foi o treinamento de uma liderança do movimento 6 de Abril, considerado o embrião da primavera egípcia. O movimento começou a ser organizado pelo Facebook para protestar em solidariedade a trabalhadores têxteis da cidade de Mahalla al Kubra, no Delta do Nilo. Foi a primeira vez que a rede social foi usada para este fim no Egito. Em meados de 2009, Mohammed Adel, um dos líderes do 6 de Abril viajou até Belgrado para ser treinado por Popovic.

Nos emails aos analistas da Stratfor, Popovic se gaba de manter relações com os líderes daquele movimento, em especial com Mohammed Adel – que se tornou uma das principais fontes de informação a respeito do levante no Egito em 2011. Na comunicação interna da Stratfor, ele é mencionado sob o codinome RS501.

“Acabamos de falar com alguns dos nossos amigos no Egito e descobrimos algumas coisas”, informa ele no dia 27 de janeiro de 2011. “Amanhã a irmadade muçulmana irá levar sua força às ruas, então pode ser ainda mais dramático… Nós obtivemos informações melhores sobre estes grupos e como eles têm se organizado nos últimos dias, mas ainda estamos tentando mapeá-los”.

Documentos da Stratfor
Os documentos vazados pelo WikiLeaks mostram que o Canvas age de maneira menos independente do que deseja aparentar. Em pelo menos duas ocasiões, Srdja Popovic contou por email ter participado de reuniões no National Securiy Council, o conselho de segurança do governo americano.

A primeira reunião mencionada aconteceu no dia 18 de dezembro de 2009 e o tema em pauta era Russia e a Geórgia. Na época, integrava o NSC o “grande amigo” de Popovic – nas suas próprias palavras – o conselheiro sênior de Obama para a Rússia, Michael McFaul, que hoje é embaixador americano naquele país.

No mesmo encontro, segundo Popovic relatou mais tarde, tratou-se do financiamento de oposicionistas no Irã através de grupos pró-democracia, tema de especial interesse para ele. “A política para o Irã é feita no NSC por Dennis Ross. Há uma função crescent sobre o Irã no Departamento de Estado sob o Secretário Assistente John Limbert. As verbas para programas pró-democracia no Irã aumentaram de US$ 1,5 milhão em 2004 para US$ 60 milhões em 2008 (…) Depois de 12 de junho de 2009, o NSC decidiu neutralizar os efeitos dos programas existentes, que começaram com Bush. Aparentemente a lógica era que os EUA não queriam ser vistos tentando interferir na política interna do Irã. Os EUA não querem dar ao regime iraniano uma desculpa para rejeitar as negociações sobre o programa nuclear”, reclama o sérvio, para quem o governo Obama estaria agindo como “um elefante numa loja de louça” com a nova política. “Como resultado, o Iran Human Rights Documentation Center, Freedom House, IFES e IRI tiveram seus pedidos de recursos rejeitados”, descreve em um email no início de janeiro de 2010.

A outra reunião de Popovic no NSC teria ocorrido às 17 horas do dia 27 de julho de 2011, conforme Popovic relatou à analista Reva Bhalla.
“Esses caras são impressionantes”, comentou, em um email entusiasmado, o analista da Stratfor para o leste europeu, Marko Papic. “Eles abrem usa lojinha em um país e tentam derrubar o governo. Quando bem usados são uma arma mais poderosa que um batalhão de combate da força aérea”.

Marko explica aos seus colegas da Stratfor que o Canvas – nas suas palavras, um grupo tipo “exporte-uma-revolução” –  “ainda depende do financiamento dos EUA e basicamente roda o mundo tentando derrubar ditadores e governos autocráticos (aqueles de quem os Estados Unidos não gostam)”. O primeiro contato com o líder do grupo, que se tornaria sua fonte contumaz, se deu em 2007. “Desde então eles têm passado inteligência sobre a Venezuela, a Georgia, a Sérvia, etc”.

Em todos os emails, Popovic demonstra grande interesse em trocar informações com a Strtafor, a quem chama de “CIA de Austin”. Para isso, vale-se dos seus contatos entre ativistas em diferentes países. Além de manter relação com uma empresa do mesmo filão idológico, se estabelece uma proveitosa troca de informações. Por exemplo, em maio de 2008 Marko diz a ele que soube que a inteligência chinesa estaria considerando atacar a organização pelo seu trabalho com ativistas tibetanos. “Isso já era esperado”, responde Srdja. Em 23 de maio de 2011, ele pede informações sobre a autonomia regional dos curdos no Iraque.

Venezuela
Um dos temas mais frequentes na conversa com analistas da Stratfor é a Venezuela; Srdja ajuda os analistas a entenderem o que a oposição está pensando. Toda a comunicação, escreve Marko Papic, é feita por um email seguro e criptografado. Além disso, em 2010, o líder do Canvas foi até a sede da Stratfor em Austin para dar um briefing sobre a situação venezuelana.
“Este ano vamos definitivamente aumentar nossas atividades na Venezuela”, explica o sérvio no email de apresentação da sua “Análise da situação na Venezuela”, em 12 de janeiro de 2010. Para as eleições de setembro daquele ano, relata que “estamos em contato próximo com ativistas e pessoas que estão tentando ajudá-los”, pedindo que o analista não espalhe ou publique esta informação. O documento, enviado por email, seria a “fundação da nossa análise do que planejamos fazer na Venezuela”. No dia seguinte, ele reitera em outro email: “Para explicar o plano de ação que enviamos, é um guia de como fazer uma revolução, obviamente”.

O documento, ao qual a Pública teve acesso, foi escrito no início de 2010 pelo “departamento analítico” da organização e relata, além dos pilares de suporte de Chávez, listando as principais instituições e organizações que servem de respaldo ao governo (entre elas, os militares, polícia, judiciário, setores nacionalizados da economia, professores e o conselho eleitoral), os principais líderes com potencial para formarem uma coalizão eficiente e seus “aliados potenciais” (entre eles, estudantes, a imprensa independente e internacional, sindicatos, a federação venezuelana de professores, o Rotary Club e a igreja católica).

A indicação do Canvas parece, no final, bem acertada. Entre os principais líderes da oposição que teriam capacidade de unificá-la estão Henrique Capriles Radonski, governador do Estado de Miranda e candidato de oposição nas eleições presidenciais de outubro pela coalizão Mesa de Unidade Democrática, além do prefeito do distrito metropolitano de Caracas, Antonio Ledezma, e do ex-prefeito do município de Chacao, Leopoldo Lopez Mendoza. Dois líderes estudantis, Alexandra Belandria, do grupo Cambio, e Yon Goicochea, do Movimiento Estudiantil Venezolano, também são listados.

O objetivo da estratégia, relata o documento, é “fornecer a base para um planejamento mais detalhado potencialmente realizado por atores interessados e pelo Canvas”. Esse plano “mais detalhado” seria desenvolvido posteriormente com “partes interessadas”.

Em outro email Popovic explica:“Quando alguém pede a nossa ajuda, como é o caso da Venezuela, nós normalmente perguntamos ‘como você faria?’ (…) Neste caso nós temos três campanhas: unificação da oposição, campanha para a eleição de setembro (…). Em circunstâncias NORMAIS, os ativistas vêm até nós e trabalham exatamente neste tipo de formato em um workshop. Nós apenas os guiamos, e por isso o plano acaba sendo tão eficiente, pois são os ativistas que os criam, é totalmente deles, ou seja, é autêntico. Nós apenas fornecemos as ferramentas”.
Mas, com a Venezuela, a coisa foi diferente, explica Popovic: “No caso da Venezuela, por causa do completo desastre que o lugar está, por causa da suspeita entre grupos de oposição e da desorganização, nós tivemos que fazer esta análise inicial. Se eles irão realizar os próximos passos depende deles, ou seja, se eles vão entender que por causa da falta de UNIDADE eles podem perder a corrida eleitoral antes mesmo que ela comece”.

Aqueles que receberam a análise (como o pessoal da Strartfor, por exemplo) aprenderam que segunda a lógica do Canvas os principais temas a serem explorados em uma campanha de oposição na Venezuela são:

- Crime e falta de segurança: “A situação deteriorou tremendamente e dramaticamente desde 2006. Motivo para mudança”

- Educação: “O governo está tomando conta do sistema educacional: os professores precisam ser atiçados. Eles vão ter que perder seus empregos ou se submeter! Eles precisam ser encorajados e haverá um risco. Nós temos que convencê-los de que os temos como alta esfera da sociedade; eles detêm uma responsabilidade que valorizamos muito. Os professores vão motivar os estudantes. Quem irá influenciá-los? Como nós vamos tocá-los?”

- Jovens: “A mensagem precisa ser dirigida para os jovens em geral, não só para os estudantes universitários”.

-Economia: “O petróleo é da Venezuela, não do governo, é o seu dinheiro, é o seu direito!  Programas de bem-estar social”.

- Mulheres: “O que as mães querem? Controle da lei, a polícia agindo sob as autoridades locais. Nós iremos prover os recursos necessários para isso. Nós não queremos mais brutamontes”.

- Transporte: “Trabalhadores precisam conseguir chegar aos seus empregos. É o seu dinheiro.  Nós precisamos exigir que o governo preste contas, e da maneira que está não conseguimos fazer isso”.

- Governo: “Redistribuição da riqueza, todos devem ter uma oportunidade”.
- “Há uma forte tendência presidencialista na Venezuela. Como podemos mudar isso? Como podemos trabalhar com isso?”

No final do email, Popovic termina com uma crítica grosseira aos venezuelanos que procura articular: “Aliás, a cultura de segurança na Venezuela não existe. Eles são retardados e falam mais que a própria bunda. É uma piada completa”.
Procurado pela Pública, o líder do Canvas negou que a organização elabore análises e planos de ação revolucionária sob encomenda. E foi bem menos entusiasta com relação ao seu “guia” elaborado para a Venezuela.
“Nós ensinamos as pessoas a analisarem e entenderem conflitos não-violentos – e durante o processo de aprendizagem pedimos a estudantes e participantes que utilizem as ferramentas que apresentam no curso. E nós também aprendemos com eles! Depois usamos o trabalho que eles realizaram e combinamos com informações públicas para criar estudos de caso”, afirmou. “E isso é transformado em análises mais longas por dois estagiários. Usamos estas análises nas nossas pesquisas e compartilhamos com estudantes, ativistas, pesquisadores, professores, organizações e jornalistas com os quais cooperamos – que estão interessados em entender o fenômeno do poder popular”.

Questionado, Popovic também respondeu às criticas feitas por Hugo Chávez no seu programa de TV: “É uma fórmula bem conhecida… Por décadas os regimes autoritários de todo o mundo fazem acusações do tipo ‘revoluções exportadas’ como sendo a principal causa dos levantes em seus países. O movimento pró-democracia na Sérvia foi, claro, acusado de ser uma ‘ferramenta dos EUA’ pela TV estatal e por Milosevic, antes dos estudantes derrubarem o seu regime. Isso também aconteceu no Zimbabue, Bielorrusia, Irã…”

O ex-colega de movimento estudantil, Ivan Marovic – que ainda hoje dá palestras sobre como aconteceu a revolta contra Milosevic, mas não faz parte da organização Canvas – concorda com ele: “É impossível  exportar uma revolução. Eu sempre digo em minhas palestras que a coisa mais importante para uma mudança social bem-sucedida é ter a maioria da população ao seu lado. Se o presidente tem a maioria da população ao lado dele, nada vai acontecer”.

Marovic avalia, no entanto, que houve uma mudança de percepção do “braço de ONGs” dos governos ocidentais, em especial dos Estados Unidos, depois da revolução na Sérvia em 2000 e as “revoluções coloridas” que se seguiram no leste europeu. “Um mês depois de derrubarmos o Milosevic, o New York Times publicou um artigo dizendo que quem realmente derrubou o Milosevic foi a assistência financeira americana. Eles estão aumentando o seu papel. E agora acreditam que a grana dos Estados Unidos pode derrubar um governo. Eles tentaram a mesma coisa na Bielorrusia, deram um monte de dinheiro para ONGs, e não funcionou”.

O pesquisador Mark Weisbrot concorda, em termos. É claro que nenhum grupo estrangeiro, ainda mais um grupo pequeno, pode causar uma revolução em um país. Para ele, não é o dinheiro do governo americano – seja através de ONGs pagas pelo National Security Council, pela USAID ou pelo Departamento de Estado – que faz a diferença. “A elite venezuelana, por exemplo, não precisa deste dinheiro. O que estes grupos financiados pelos EUA, antigamente e hoje, agregam são duas coisas: uma é habilidade e o conhecimento necessário em subverter regimes. E a segunda coisa é que esse apoio tem um papel unificador. A oposição pode estar dividida e eles ajudam a oposição a se unificar”. Para ele, muitas vezes o patrocínio americano tem uma “influência perniciosa” em movimentos legítimos. “Sempre tem pessoas grupos lutando pela democracia nestes países, com uma variedade de demandas, reforma agrária, proteções sociais, empregos… E o que acontece é que eles capitaneiam todo o movimento com muito dinheiro, inspirado pelas políticas que interessam aos EUA. Muitas vezes, os grupos democráticos que recebem o dinheiro acabam caindo em descrédito”.

Clique aqui para ver todos os documentos no site do WikiLeaks.

 Fonte:

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Denúncia de sonegação de impostos pela Globo

Blog O Cafezinho, 01/08/2013

Vazam mais páginas do Globogate!

Enviado por Miguel do Rosário on 01/08/2013

Mais algumas páginas do relatório da Receita Federal que trata da milionária sonegação da Rede Globo acabam de vazar. O Cafezinho mais uma vez divulga o fato em primeira mão.

As novas páginas disponibilizadas referem-se à decisão final da Receita de condenar a Globo ao pagamento de multa de 150%, mais juros de mora, sobre o valor sonegado. Importante anotar a data deste documento: 21 de dezembro de 2006. Alguns dias depois, estes documentos seriam roubados pela servidora Cristina Maris Meinick Ribeiro.

No documento, os auditores votam, por unanimidade, pela culpa do réu e dão 30 dias para a Globo pagar a dívida, a menos que recorresse ao Conselho de Contribuintes no mesmo prazo. O roubo do processo, alguns dias depois, permitiu à Globo adiar por um longo tempo a renegociação deste débito.

A informação joga mais pressão sobre o Ministério Público. Por que não se aprofundou nas investigações sobre o roubo do processo? Por que não ligou o roubo à sonegação em si? Ambos fazem parte do mesmo ilícito, do mesmo desejo de lesar o Tesouro Nacional. Tinha obrigação de investigar a suspeita, óbvia, de envolvimento do principal interessado: a Globo.

Em uma de suas respostas, a Globo mencionou dívidas sendo negociadas no Conselho de Contribuintes. Tudo leva a crer que a emissora apelou ao Conselho, que conta com a participação de entidades privadas. Mais uma vez, estamos diante de uma situação nebulosa.  A Globo disse que pagou o débito através da adesão ao Refis, em 2009. Como assim? No dia 21 de dezembro de 2006, a Receita deu apenas 30 dias, sob pena de cobrança executiva, para a empresa pagar ou apelar ao Conselho. Ela apelou ao Conselho? O roubo do processo lhe deu quantos meses de alívio? Qual foi a decisão do Conselho? Quem fazia parte do Conselho nesta época?

O mais importante: os novos documentos agora obrigam a mídia a não falar mais em “suposta” sonegação. Eles mostram que os auditores decidiram, com unanimidade, pela culpabilidade da empresa.

Atentem para o trecho no fácsímile abaixo:





Abaixo a coleção completa dos documentos já vazados. O roteiro é o seguinte:
Capa
2 fls novas
5 fls em repetição
3 fls novas
17 fls que já estavam divulgadas.
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quarta-feira, 31 de julho de 2013

"Brasil: geopolítica e desenvolvimento", por José Luís Fiori

Carta Maior,  31/07/2013

Brasil: geopolítica e desenvolvimento

José Luís Fiori
 
Apesar da posição do governo, existem divisões e resistências profundas, dentro de suas elites e de suas agências governamentais, que seguem retardando a consolidação efetiva da nova estratégia brasileira. Como se o sistema político, a sociedade e a intelectualidade brasileira ainda não estivessem preparados para assumir os objetivos definidos pelos documentos oficiais. Por José Luís Fiori


“A impotência dos economistas não é culpa da economia, é culpa do “desenvolvimento” que não cabe dentro dos limites estreitos da própria economia.”
J.L.F. “Poder, Geopolítica e Desenvolvimento”, Editora Boitempo, SP, 2013, pg 21, (no prelo)


1. Na primeira década do século XXI, o Brasil começou a trilhar uma estratégia de afirmação internacional que retoma iniciativa proposta e interrompida na década de 60. De maneira ainda titubeante, o Brasil vem expandindo sua presença em alguns tabuleiros geopolíticos e vem tentando aumentar sua capacidade de defesa autônoma de suas reivindicações internacionais. A nova estratégia foi definida pelo Plano Nacional de Defesa, e pela Estratégia Nacional de Defesa, aprovados pelo Congresso Nacional, em 2005 e 2008, respectivamente. Nos dois documentos, o governo brasileiro propõe uma política externa que integre suas ações diplomáticas, com suas politicas de defesa e de desenvolvimento econômico, e ao mesmo tempo, introduz um conceito inovador na história democrática do país, o conceito de “entorno estratégico”, onde o Brasil se propõe irradiar, de forma preferencial, a sua influência e a sua liderança, incluindo a América do Sul, a África Subsaariana, a Antártida, e a bacia do Atlântico Sul.

2. Um país pode projetar o seu poder e a sua liderança, fora de suas fronteiras nacionais, através da coerção, da cooperação, da difusão das suas ideias e valores, e também, através da sua capacidade de transferir dinamismo econômico para sua “zona de influência”. Mas em qualquer caso, uma política de projeção de poder exige objetivos claros e uma coordenação estreita, entre as agencias responsáveis pela política externa do país, envolvendo a diplomacia, a defesa, e as políticas econômica e cultural. Sobretudo exige uma sociedade mais igualitária e mobilizada, e uma “vontade estratégica” consistente e permanente, ou seja, uma capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos internacionais de longo prazo, junto com a capacidade de planejar e implementar ações de curto e médio prazo, em conjunto com os atores sociais, políticos e econômicos relevantes.

3. Ao contrário de tudo isto, desde a II Guerra Mundial, e mesmo depois do fim da Guerra Fria, até o início do século XXI, a política externa brasileira oscilou no tempo, mudando seus objetivos imediatos segundo o governo, apesar de que tenha mantido sempre seu alinhamento – quase automático – ao lado das “grandes potências ocidentais”. E mesmo hoje, apesar da posição do governo, existem divisões e resistências profundas, dentro de suas elites e dentro de suas agências governamentais, que seguem retardando a consolidação efetiva da nova estratégia brasileira. Como se o sistema político, a sociedade e a intelectualidade brasileira ainda não estivessem preparados para assumir os objetivos definidos pelos documentos oficiais. A própria universidade brasileira só expandiu recentemente sua capacidade de pesquisa e formação de recursos humanos na área internacional. E algumas universidades do país não possuem nem centros nem unidades especializadas, como é o caso surpreendente da UFRJ, a maior universidade federal do país. Além disto, existe uma carência acentuada de instituições ou think tanks que cumpram o papel de reunir as informações e as ideias indispensáveis para o estudo e a escolha de alternativas, e para a orientação inteligente da inserção internacional do país.

4. De qualquer maneira, se o Brasil conseguir sustentar suas novas posições, terá que se enfrentar inevitavelmente com uma regra fundamental do sistema: todo país que se propõe ascender a uma nova posição de liderança regional ou global em algum momento terá que questionar os “consensos éticos” e os arranjos geopolíticos e institucionais que foram definidos e impostos previamente, pelas potências que já são ou foram dominantes, dentro do sistema mundial. Esta regra não impede o estabelecimento de convergências e alianças táticas, entre a potência ascendente com uma ou várias das antigas potencias dominantes, mas exige que a potência ascendente mantenha seu objetivo permanente de crescer, expandir e galgar posições, dentro do sistema internacional. Isto não é uma veleidade ideológica, é um imperativo do próprio sistema interestatal capitalista: neste sistema, “quem não sobe cai” (nota).

5. Mesmo assim, sempre existirá um imenso espaço de liberdade e de invenção revolucionária para o Brasil: descobrir como projetar seu poder e sua liderança fora de suas fronteiras sem seguir o figurino tradicional das grandes potências. Ou seja, sem reivindicar nenhum tipo de “destino manifesto”, sem utilizar a violência bélica dos europeus e norte-americanos, e sem se propor conquistar qualquer povo que seja, para “convertê-lo”, “civilizá-lo”, ou simplesmente comandar o seu destino.

Nota
Elias, N. (1993), O Processo Civilizador, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, pág. 94