domingo, 22 de novembro de 2015

A hegemonia alemã na Europa


A hegemonia alemã na Europa 

Nesta segunda-feira, 23 de novembro de 2015, no Clube de Cultura de Porto Alegre, ocorre um debate entre o prof. Dr. Paulo G. Fagundes Visentini e o prof. José Miguel Quedi Martins sobre o "Novo papel da Alemanha: derrotada em 1945, dona da Europa em 2015".

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Referente a este tema, recomendamos a leitura do artigo de Emmanuel Todd:




TODD, Emmanuel (2014). La France s’est mise en état de servitude volontaire par rapport à l’Allemagne.  Les Crises, 01 setembro 2014.



https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiok9YpB9WvKWjsZvDhBm9XRMpwJCCpfG3wAbCLlZ6kbKt825mmNkNe66wQOmhu_b2DAL9ag4KYQvoTVuGmDcL2tbTyDnDYXLCSnt7NVs18Ft_vzsiflOPTlUSJapm-8fM38EL5sSNz_Gc/s1600/Emmanuel+todd-mapa.jpgA França estabeleceu um estado de servidão voluntária em relação à Alemanha





Olivier Berruyer (OB): Emmanuel Todd, como você vê a crise atual com a Rússia?
Emmanuel Todd (ET): Há alguma coisa estranha, irreal, no atual sistema internacional. Alguma coisa não faz sentido: todo mundo dedicado a atacar uma Rússia que mal chega aos 145 milhões de habitantes, que se reergueu, é verdade, mas em relação à qual ninguém pode supor que volte a ser potência dominante, em escala mundial, nem mesmo em escala europeia. A força da Rússia é fundamentalmente defensiva. Manter a integridade de seu território imenso já é problemático, com população tão reduzida, comparável à do Japão.
A Rússia é uma potência de equilíbrio: seu arsenal nuclear e sua autonomia energética fazem com que possa desempenhar o papel de contrapeso aos EUA. A Rússia pode permitir-se acolher Snowden e ajudar a defender as liberdades civis no Ocidente. Mas a hipótese de uma Rússia que devore a Europa e o mundo é absurda.
OB: No início de sua carreira você interessava-se muito mais pela URSS – chegou a prever a desintegração iminente. Hoje, a Rússia não tem mais o nível hegemônico daquele tempo, e embora a Rússia seja mais democrática que a URSS, é tratada com ainda mais desconsideração. Por exemplo, quando a URSS interveio na Tchecoslováquia, em 1968, com seus tanques, houve protestos, mas rapidamente, em semanas, a histeria acabou. Hoje, quando não acontece nada nem semelhante, além de uma população que vota democraticamente na Crimeia a favor de ser reintegrada à casa da mãe russa, tem-se a impressão de que estaria acontecendo drama terrível, que justificaria até fazermos guerra à Rússia para devolver a Crimeia, contra a vontade dos crimeanos, à Ucrânia. Por que o tratamento tão diferente?
ET: Essa questão não diz respeito só à Rússia, diz respeito a todo o Ocidente. O Ocidente, com certeza massivamente dominante, está hoje contudo, em todos os estados que o compõem, inquieto, ansioso, doente: crise financeira, estagnação ou baixa nos ganhos, aumento das desigualdades, ausência total de perspectivas e, no caso da Europa continental, crise demográfica. Se nos colocamos no plano ideológico, essa fixação contra a Rússia parece ser a procura de um bode expiatório, melhor, como a criação de inimigo necessário para manter alguma qualquer mínima coerência no Ocidente. A União Europeia nasceu contra a URSS; não vive sem o adversário russo.
Mas também é verdade que a Rússia impõe ao mundo ocidental alguns problemas de “valores”. Contudo, ao contrário do que sugerem as asneiras antiputinistas e russofóbicas do Jornal Le Monde, o problema do Ocidente é o caráter positivo e útil de vários valores da cultura e da história russa.
A Rússia não acompanhou o mundo ocidental na trilha do “liberalismo total”. Lá, se manteve e reafirmou-se um determinado papel para o Estado, e, também, uma determinada ideia nacional. É país que está começando a reerguer-se, inclusive em termos de fecundidade, de diminuição da mortalidade infantil. O desemprego é baixo.
Sem dúvida: os russos são pobres e ninguém na Europa ocidental inveja o sistema russo, também no nível das liberdades. Mas ser russo hoje é pertencer a uma coletividade nacional forte e protetiva, é a possibilidade de se projetar mentalmente para um futuro melhor, é estar andando para alguma coisa. Quem pode dizer a mesma coisa da França?
A Rússia está em vias de se tornar, sem que esse seja algum tipo de projeto, uma verdadeira ameaça para os que, no ocidente, fazem ares de nos governar, perdidos na história, que falam de valores ocidentais, mas que, como diz, acho, Basile de Koch, “em matéria de valores, só reconhecem os bursáteis”. Mas já não se trata de conflito entre Oriente e Ocidente, tradicional, regressivo, no sentido psiquiátrico, no qual os EUA seriam o motor.
A crise atual tem tudo a ver com a intervenção europeia na Ucrânia. Se se escapa do delírio ‘jornalístico’ das mídias ‘ocidentais’, que parecem ter regredido a 1956, em plena guerra fria ameaçando esquentar, e observamos a realidade geográfica dos fenômenos, o que se vê, muito simplesmente, é que o conflito acontece numa zona tradicional de enfrentamento entre Alemanha e Rússia.
Desde o início tive a sensação de que os EUA, dessa vez, talvez por medo da desmoralização depois que a Crimeia quis voltar à Rússia, acompanharam os passos da Europa, ou, mais, da própria Alemanha, porque é a Alemanha quem controla a Europa. Veem-se sinais contraditórios vindos da Alemanha. Às vezes, a Alemanha parece mais pacifista, numa linha de retirada, de cooperação. Outras vezes, ao contrário, aparece fortemente contestatária, ou enfrenta declaradamente a Rússia. O vigor dessa linha dura aumenta dia a dia.
Steinmeier levou Fabius e Sikorski a Kiev. Mas Merkel vai sozinha, em visita ao novo protetorado ucraniano. E não é só nesse enfrentamento, que a Alemanha caminha na frente. No espaço de seis meses, também nas últimas semanas, quando já estava em virtual conflito com a Rússia nas planícies ucranianas, Merkel humilhou os ingleses, ao impor-lhes Juncker, com grosseria inacreditável, como presidente da Comissão Europeia. Evento ainda mais extraordinário, os alemães começaram a afrontar os EUA, servindo-se de uma história de espionagem pelos norte-americanos.
É absolutamente inacreditável, se se conhecem as relações muito íntimas entre as atividades de informação e inteligência norte-americanas e alemãs, desde a guerra fria. Parece também hoje, que os serviços alemães de informação, BND, também espionam, muito normalmente, os políticos norte-americanos. Ainda que soe chocante, eu diria que, consideradas as ambiguidades da política alemã, sou absolutamente favorável a que a CIA monitore os responsáveis pela política alemã. Espero também que os serviços de informação franceses façam seu serviço e participem da vigilância sobre uma Alemanha cada vez mais ativa e aventurosa no plano internacional.
O que se deve considerar é que essa agressividade antiamericana da Alemanha é fenômeno novo, que temos de considerar. O estilo é fascinante. O modo como os políticos alemães falaram dos norte-americanos manifesta profundo desprezo. Já há importante fundo antiamericano além-Reno. Pude avaliá-lo quando do lançamento da edição alemã do meu livro Depois do Império. Acho que aquele fundo antiamericano explica o sucesso excepcional da edição em alemão. Já houve até um momento em que o governo alemão zombou das reprimendas norte-americanas em matéria de gestão econômica. Contribuir para o equilíbrio da demanda mundial? E depois, o que mais?
A Alemanha tem seu projeto, de poder, mais do que de bem-estar: comprimir a demanda na Alemanha, pôr a ferros os países endividados do sul, pôr uns amendoins ao sistema bancário francês que controla o Eliseu, etc..
Num primeiro momento, quando a Crimeia foi tomada, estive mais sensível ao restabelecimento da Rússia: potência que não quer mais se deixar atropelar e que é capaz de tomar decisões. Hoje, constato que a Rússia é, fundamentalmente, uma nação em estabilização, e só em estabilização, por mais que tantos pintem a Rússia como um lobo-mau.
Mas a verdadeira potência emergente, antes da Rússia, é a Alemanha. A Alemanha fez um caminho prodigioso, das dificuldades econômicas que tinha quando da reunificação até o restabelecimento econômico e, na sequência, a tomada de controle sobre todo o continente, nos últimos cinco anos. Tudo isso está aí para ser reinterpretado
A crise financeira não apenas demonstrou a solidez da Alemanha. Ela também revelou a capacidade da Alemanha para usar a crise da dívida para baixar a crista de todo o continente.
Se nos livramos da retórica arcaica da guerra fria, se paramos de sacudir o chocalho ideológico da democracia liberal e de seus valores, se se para de dar ouvidos ao blá-blá-blá europeísta, para observar a sequência em curso de modo a observar a sequência histórica em andamento, de modo bruto, quase como uma criança, em resumo, se se aceita ver que o rei está nu, contata-se que:
(1) ao longo dos últimos cinco últimos anos, a Alemanha tomou o controle do continente europeu no plano econômico e político; e que
(2) ao cabo desses mesmos cinco anos, a Europa já está virtualmente em guerra contra a Rússia!
Esse fenômeno simples é ocultado por uma dupla negação; dois países agem como ferrolhos para impedir que compreendamos a realidade do que se passa.
Primeiro, a França, que continua sem admitir que se pôs em estado de servidão voluntária, na relação com a Alemanha. Não pode fazer diferente, porque não admite plenamente o crescimento do poder da Alemanha e o fato de que não está no padrão que lhe permita controlar esse crescimento. Se há lição geopolítica a extrair da IIª Guerra Mundial, é que a França não consegue controlar a Alemanha; e que temos de reconhecer as imensas qualidades de organização e de disciplina econômica... e o não menos imenso potencial para a irracionalidade política.
Que a França recusa-se a ver a realidade alemã é uma evidência. Já há algum tempo venho falando de François Hollande como “vice-chanceler Hollande”. Pensando bem, de fato, ele é mais um simples “diretor de comunicação da chancelaria”. Hollande é nada. Alcança níveis excepcionais de impopularidade, que são efeito, em parte, do servilismo diante da Alemanha. François Hollande é desprezado como é, pelos franceses, porque é homem que obedece à Alemanha. Mas todas as elites francesas, jornalísticas e políticas, estão afundadas no mesmo processo de negação, de não ver.
 (...)

 
OB: Você diz “A França afinal não pode controlar a Alemanha”: não há o que fazer ou caberia a outro fazer?
ET: Qualquer outro faria. Da última vez, a tarefa recaiu sobre norte-americanos e russos. É preciso admitir que o “sistema Alemanha” é capaz de gerar uma energia prodigiosa. Como historiador e antropólogo, poderia dizer a mesma coisa do Japão, da Suécia, ou da cultura judia, basca ou catalã.
É fato: algumas culturas são assim. A França tem outras qualidades. Produziu ideias de igualdade, de liberdade, uma arte de viver que fascina o planeta, e está fazendo mais filhos que os países vizinhos, mantendo-se como país avançado no plano intelectual e tecnológico. É provável que ao final, se se tivesse mesmo de julgar, teríamos de admitir que a França tem visão mais equilibrada e satisfatória da vida.
Mas não se trata de metafísica ou de moral: falamos de relações internacionais de força. Se um país especializa-se na indústria ou na guerra, é preciso levar isso em conta e verificar como essa especialização econômica, tecnológica e de potência, pode ser controlada.
OB: E qual o outro país que está em surto de negação?
ET: Os EUA. A negação americana foi formalizada no primeiro estágio da emancipação da Alemanha, quando da guerra do Iraque em 2003 e da associação Schröder-Chirac-Putin; alguns estrategistas norte-americanos disseram naquele momento que “É preciso castigar a França, esquecer [o que fez a] Alemanha e perdoar a Rússia” (“Punish França, forget Germany, forgive Russia” [1]). Por quê? Porque a chave do controle da Europa pelos EUA, herança da vitória de 1945, estava em os EUA controlarem a Alemanha.
Decretar a emancipação alemã de 2003 seria decretar o início da dissolução do império americano. Essa estratégia de avestruz instalou-se, calcificou-se e parece hoje impedir que os norte-americanos vejam corretamente a emergência da Alemanha, nova ameaça contra eles, segundo minha avaliação, mais perigosa, no tempo, para a integridade do império americano, que a Rússia, exterior e distante do império.
A Alemanha tem papel complexo, ambivalente, mas é um motor dentro da crise: frequentemente a nação alemã aparece como pacifista; e a Europa, controlada pela Alemanha, como agressiva. Ou o contrário. A Alemanha tem dois chapéus: a Europa é a Alemanha, e a Alemanha é a Europa. Pode, portanto, falar a várias vozes. Quando se conhece a instabilidade psíquica que caracteriza historicamente a política externa alemã, sua bipolaridade, no sentido psiquiátrico, na relação com a Rússia, é muito inquietante.
Sei que estou falando muito duramente, mas a Europa está à beira da guerra contra a Rússia, e não temos tempo para mesuras e meias palavras. Populações de língua e de cultura e de identidade russas são atacadas na Ucrânia oriental, com aprovação, apoio e sem dúvidas, agora, já também com armas da União Europeia.
Penso que os russos sabem que estão, de fato, em guerra com a Alemanha. O silêncio deles quanto a isso, como no caso dos franceses e norte-americanos, não é recusa a ver a realidade. É boa diplomacia, porque os russos precisam de tempo. O autocontrole deles, o profissionalismo, como diriam Putin ou Lavrov, merecem admiração.
Até o momento, nessa crise, a estratégia dos norte-americanos tem sido correr na retaguarda dos alemães, para que ninguém veja que eles já não controlam a situação na Europa. Esses EUA, que não mais controlam e agora têm de aprovar as aventuras regionais dos ex-vassalos, tornaram-se um problema, o problema geopolítico n.1, hoje.
No Iraque, esses EUA já tiveram de cooperar com o Irã, seu inimigo estratégico, para fazer frente aos jihadistas subvencionados pela Arábia Saudita. A Arábia Saudita tem, como a Alemanha, estatuto de aliado sênior; a traição, nesse caso, então, não foi decretada...
Na Ásia, os Coreanos do Sul, por ressentimento contra os japoneses, começam a conversar com os chineses, rivais estratégicos dos EUA. Por todos os cantos, não só na Europa, o sistema norte-americano se fende, derrete-se ou coisa pior.
A potência da hegemonia alemã na Europa merece portanto análise mais detalhada, numa perspectiva dinâmica. É preciso explorar, projetar, prever, para orientar-se nesse mundo que está nascendo. É preciso aceitar ver esse mundo como o vê a escola estratégica realista, por exemplo, de Henry Kissinger, quer dizer, nada de considerar valores políticos: só puras relações de força entre sistemas nacionais.
Se se pensa desse modo, constata-se que a Rússia não é o problema do futuro; que a China ainda não é grande coisa em termos de poder militar. No nosso mundo econômico globalizado, podemos pressentir a emergência de um novo cara a cara entre dois grandes sistemas: a nação-continente norte-americana e esse novo império alemão, império econômico-político que as pessoas insistem em ainda chamar de “Europa” só por hábito. É interessante avaliar a relação de força potencial entre os dois.
Não sabemos como terminará a crise ucraniana. Mas temos de fazer o esforço de nos projetar até depois dessa crise. O mais interessante é tentar imaginar o que uma vitória do “ocidente” produzirá. Porque se chega, por aí, a uma descoberta espantosa: se a Rússia fracassar, ou se ela apenas ceder, deixar de resistir, a desproporção das forças demográficas e industriais, entre o sistema alemão (com a Ucrânia já acrescentada) e os EUA levarão, muito provavelmente, a uma transferência do centro de gravidade dentro do ocidente, e ao naufrágio do sistema norte-americano.
Hoje, o que os EUA mais têm a temer é que a Rússia fracasse.
Mas uma das características da situação é que os atores são incompetentes e bem pouco conscientes do que fazem. Não falo só de Obama, que nada compreende da Europa, nasceu no Havaí e viveu na Indonésia, para ele só existe a área do Pacífico.
Mas falo dos geopolitólogos norte-americanos clássicos, de tradição “europeia”, que também estão completamente ultrapassados. Penso em particular em Zbigniew Brzezinski o qual, já muito envelhecido, permanece como teórico do controle sobre a Eurásia, pelos EUA. Obcecado contra a Rússia, ele não viu que a Alemanha se aproximava. Não viu que os militares norte-americanos, ao estender a OTAN até os estados do Báltico, até a Polônia (...) estavam, de fato, recortando um império para a Alemanha; de início, só império econômico, mas agora já império político.
A Alemanha começa a entender-se com a China, o outro grande exportador mundial.
Será que em Washington ninguém se lembra de que, nos anos 1930s, a Alemanha oscilou por muito tempo entre a aliança chinesa e a aliança japonesa, e que Hitler começou por armar Chang Kai-Chek e formar seu exército?
A extensão da OTAN para o leste pode, no fim, trazer uma espécie de versão B do pesadelo, para Brzezinski: a reunificação da Eurásia, independente dos EUA. Fiel às suas origens polonesas [Zbig] só temia uma Eurásia sob controle russo. Agora está exposto ao risco de passar à história como mais um daqueles poloneses absurdos que, de tanto que odeiam a Rússia, promoveram a grandeza da Alemanha.
OB: Como você sugeriu, proponho analisarmos os gráficos seguintes, em que se comparam os EUA e uma Europa germanocêntrica.[2] (gráficos das páginas 8 e 9 do “scribe” em epígrafe)
ET: O que esses gráficos mostram é a superioridade industrial potencial da Europa. Sim, a Europa alemã é heterogênea e intrinsecamente frágil, potencialmente instável, mas o mecanismo em curso de hierarquização das populações começa a definir uma estrutura de dominação coerente e por vezes eficaz. A potência alemã recente construiu-se porque populações antigamente comunistas foram postas a trabalhar.
É algo de que os próprios alemães com certeza não têm plena consciência, e aí provavelmente está a fragilidade deles: a dinâmica da economia alemã não é só alemã. Parte do sucesso de nossos vizinhos de além Reno advém do fato de que os comunistas cuidaram com extrema atenção da educação. Deixaram como herança não só sistemas industriais obsoletos, mas, também populações excepcionalmente bem educadas.
Comparar a situação da educação da Polônia antes da guerra, e a que se tem hoje, é admitir que o país deve uma parte dos seus sucessos econômicos atuais ao comunismo – ou talvez pior que isso: à Rússia. Um dia saberemos em que estado a administração alemã deixará a Polônia.
Fato é que a Alemanha substituiu a Rússia como potência que controla o leste europeu e conseguiu fazer dele uma potência. A Rússia, ela, foi debilitada pelo controle sobre democracias populares, o custo militar não compensado pelo ganho econômico. Graças aos EUA, o custo do controle militar é, para a Alemanha, próximo de zero.
(clique na imagem para aumentar)

OB: Este mapa mostra o novo império alemão, como está hoje, segundo você. Vê-se o lugar central da Alemanha face aos seus diferentes satélites, ou, como você diz bem, países que se puseram em estado de servidão voluntária. O que esse mapa lhe sugere?
ET: Gostaria que esse mapa ajudasse todos a tomarem consciência do fato de que a Europa mudou de natureza; é mapa que evoca não só o presente, mas também um futuro possível muito próximo. Os mapas que a Comunidade europeia distribui são mapas que aspiram a ser igualitários e que já nada dizem sobre a realidade. Esse mapa é uma espécie de primeira tentativa para organizar visualmente a nova realidade da Europa. Ajuda a tomar consciência do caráter central da Alemanha e do modo como controla o continente europeu. A primeira coisa que esse mapa procura dizer é que existe um espaço informal maior que a Alemanha: “o espaço alemão direto”, que inclui países cujas economias dependem da Alemanha num nível quase absoluto.
OB: É uma zona de cerca de 130 milhões de habitantes...
ET: Realmente. Mas esse espaço não é a única razão da influência alemã. Creio que a Alemanha jamais teria sido capaz de tomar o controle do continente sem a cooperação da França. É outro elemento que está mostrado nesse mapa: a servidão voluntária da França e de seu sistema econômico e, no interior desse quadro, a aceitação, pelas elites francesas, do que talvez seja para elas – mas não para o povo francês – a prisão dourada do euro. Os bancos franceses apenas sobrevivem, nessa prisão dourada. A França acrescenta seus 65 milhões de habitantes ao espaço direto alemão, e confere a ele também uma espécie de massa crítica de escala continental.
OB: Quase 200 milhões...
ET: Significa que já estamos acima da escala russa ou japonesa. O bloco negro e cinza representa o coração da potência alemã; mantém submissa a Europa do sul, convertida em zona dominada no interior do próprio sistema europeu. A Alemanha é detestada na Grécia e, sem dúvida em todo o sul da Europa por causa da mão de ferro sobre o orçamento. Mas esses países não conseguem nada, porque a Alemanha, com seu espaço próximo mais a França, tem a capacidade de dominar tudo. São os países que aparecem em laranja, no mapa.
Proponho também outra categoria específica de país, em vermelho, os que chamei de “satélites russófobos”. São países que têm certo grau de liberdade. Estão no espaço da soberania alemã, mas não classificaria o estatuto desses países como de servidão, porque são países que têm reais aspirações autônomas e, principalmente, uma paixão antirrussa.
Veja: a França já não tem qualquer sonho; sob governo do PS, da UMP de Sarkozy e de seus fiscais de finanças, a França só aspira a obedecer, a imitar e a embolsar os jetons pelo comparecimento. Polônia, Suécia, países bálticos, esses sim, tem um sonho: arrancar a pele da Rússia. A participação voluntária desses países no espaço de dominação alemã lhe permite continuar sempre com o mesmo sonho.
Mas me pergunto se, mais profundamente, a Suécia, já convertida à direita, não estará em vias de voltar a ser completamente o que era antes de 1914, quero dizer, germanófila?
Os satélites russófobos merecem categoria especial, porque fazem parte das forças que podem ajudar a Alemanha a tomar o caminho errado, ao endeusá-la e ao recusar-se a criticá-la. A submissão francesa aparecerá aos historiadores do futuro como uma contribuição fundamental ao desequilíbrio psíquico futuro da Alemanha.
Para Suécia ou Polônia ou os Bálticos, a coisa é outra. Ali se trata francamente e diretamente de empurrar a Alemanha para a violência das relações internacionais. Não incluí Finlândia e Dinamarca nessa categoria. Ao contrário da Suécia, a Dinamarca é autenticamente liberal por temperamento. Seu laço com a Inglaterra vai além do simples bilinguismo tipicamente escandinavo de boa parte da população. A Dinamarca olha para o ocidente e não é obcecada pela Rússia.
A Finlândia aprendeu a viver com os soviéticos, e não tem razão verdadeira para duvidar da possibilidade de se entender com os russos. É verdade que jamais esteve em guerra contra eles. Pertenceu ao Império dos Czares entre 1809 e 1917, mas sob a forma de um grão-ducado, situação que, de fato, permitiu-lhe escapar de ser tomada pelos suecos. A verdadeira potência colonialista, para os finlandeses, é a Suécia; e duvido que queiram voltar a viver sob liderança sueca.
No mapa, Finlândia e Dinamarca encontram-se pois dominadas, como os países do sul. Absurdo? A economia finlandesa já paga o preço da agressão europeia contra a Rússia. E a Dinamarca será posta em situação difícil com a fuga dos ingleses.
O Reino Unido, descrevi-o como “em vias de evasão”, porque os ingleses não podem aderir a um sistema colonial que lhes provoca horror. Os ingleses não têm o hábito, como certos franceses, de obedecer aos alemães. Mas também porque pertencem a outro mundo, muito mais excitante, menos velho e autoritário que a Europa alemã, a “anglosfera”: EUA, Canadá, as antigas colônias...
Já disse noutra ocasião, que simpatizo com o dilema dos ingleses. Deve ser realmente horrível ser britânico, face a uma Europa tão importante nas trocas comerciais, mas mentalmente artrítica.
OB: Você acha que deixarão a União Europeia?
ET: Claro que sim! Os ingleses não são mais fortes ou melhores, mas eles têm por trás, os EUA. No que me concerne, francesinho confrontado ao desaparecimento da autonomia da minha nação, se puder escolher entre a hegemonia alemã e a hegemonia norte-americana, escolheria a hegemonia norte-americana sem pensar duas vezes. E os ingleses? Você acha que escolherão o quê?
Associei a Hungria aos britânicos, nessa tentativa de evasão. Viktor Orban tem má reputação na Europa, aparentemente por ser autoritário e “linha dura”. Talvez seja, mas sobretudo porque resiste contra a pressão alemã. Podemos nos perguntar por que a Hungria não é antirrussa, dado que passou por violenta repressão soviética em 1956. Como tantas vezes, o “apesar disso” tem de ser substituído por um “por isso mesmo”. Em 1956, só a Hungria encarou. Mais que os poloneses ou os tchecos – que praticamente não moveram uma palha – a Hungria pode orgulhar-se da própria história sob dominação dos russos. Dado que não tem do que se envergonhar, a Hungria pode perdoar.
Uma bela piada húngara dos anos 1970 talvez ajude a compreender as diferenças leste-europeias: “Em 1956, os húngaros comportaram-se como poloneses, os poloneses como tchecos e os tchecos como porcos”.
Representei a Ucrânia como “em vias de ser anexada”. A Ucrânia não aparece imediatamente como a anexação europeísta sonhada. Trata-se de anexação de uma zona cujo estado e indústria estão em decomposição, uma desintegração que se vai acelerar pelos acordos de livre comércio com a União Europeia. Mas é também a anexação, a custo muito baixo, de uma população ativa. Ou, fundamentalmente, o novo sistema alemão repousa sobre a anexação de populações ativas.
Num primeiro momento foram utilizadas as populações de Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, etc. Os alemães reorganizaram seu sistema industrial, utilizando o trabalho a preço baixo dessas populações. Na Ucrânia há população ativa de 45 milhões de pessoas. Com seu bom nível de formação herdado ainda da época soviética, será presa excepcional para a Alemanha; a possibilidade de uma Alemanha dominante por muito tempo e, sobretudo, com seu império, passando imediatamente a ser potência econômica efetiva, acima dos EUA. Pobre Brzezinski!
OB: E quanto às questões energéticas? (Vide mapa p. 14 do “scribe” em epígrafe)
ET: Aqui, os principais gasodutos são indicados para demolir um mito. O mito de que os russos, pela construção do gasoduto Ramo Sul desejariam apenas escapar de ter suas relações energéticas controladas pela Ucrânia. Se se consideram todos os trajetos de gasodutos existentes, o único ponto em comum entre eles não é que todos passem pela Ucrânia. Há um segundo ponto em comum entre todos eles: todos chegam à Alemanha. De fato, o verdadeiro problema dos russos não é só a Ucrânia, é também o controle (dos alemães) sobre o ponto de chegada dos gasodutos. Esse é também o problema dos europeus do sul.
Se pararmos de pensar com ingenuidade sobre a Europa, como se fosse sistema igualitário, que teria problemas com o urso russo, vê-se logo que a Alemanha pode também ter interesse em que aquele gasoduto Ramo Sul não seja construído, porque poria fora de seu controle os fornecimentos de energia para toda a parte da Europa que a Alemanha domina.
A questão estratégica do Ramo Sul não é portanto apenas questão entre Oriente e Ocidente, entre Ucrânia e Rússia, mas é questão também entre a Alemanha e a Europa dominada do sul. Mas, mais uma vez, esse mapa não é mapa definitivo; é mapa para criar um começo de imagem da realidade da Europa; e para nos afastar da ideologia dos mapas “neutros” que escondem o que a Europa está em via de se converter: um sistema de nações desiguais, presas numa hierarquia que compreende países severamente dominados; países agressivos; um país dominante e um país que é a vergonha do continente, o nosso, a França.
OB: Você não fala da questão turca...
ET: Não falei porque o assunto não é mais esse. Os europeus não querem mais a Turquia. Mas, o que é muito mais importante, os turcos não querem mais a Europa. Que, aliás, quereria entrar nessa prisão de povos?
O desequilíbrio industrial em favor da União Europeia em relação aos EUA é espetacular.
OB: Os gráficos permitem comparar as potências relativas da nação americana e desse novo ‘império alemã’ (ver gráficos pp. 15 e 16 do “scribe” em epígrafe). [3]
ET: Para mim, o gráfico mais interessante é o que mostra as populações ativas industriais (no fim do parágrafo). O desequilíbrio industrial em favor da União Europeia em relação aos EUA é espetacular. O fato de que há na Europa setores industriais ainda subdesenvolvidos não é negativo, ao contrário: no domínio industrial na Europa, há capacidades de expansão nas zonas de baixos salários. Esse desequilíbrio é que permitiu, sem dúvida, que a Alemanha condenasse à morte o sistema industrial norte-americano. No atual estado de coisas, quem mais quer o Tratado da Parceria Transatlântica é a Alemanha.
(clique na imagem para aumentar)
OB: A distância da Alemanha, para a Europa, aparece bem no nível do PIB real (ver gráficos pp. 17 a 22 do “scribe” em epígrafe [4]).
ET: Nesses gráficos vê-se também a implacável hierarquização da Europa em torno do epicentro alemão a partir de 2005: a queda dos países europeus em relação à Alemanha, inclusive dos grandes países, como França ou Reino Unido. Vê-se nessas curvas a rapidez de uma evolução que está só começando. Talvez parte do povo alemão sofra com baixos salários, mas, globalmente, o PIB por habitante sempre termina por pender a favor da Alemanha. Estamos andando em direção a um sistema no qual os alemães serão beneficiários do esmagamento dos sistemas industriais do resto do continente. Observa-se também que, em relação a esse continente sob controle alemão, os EUA não são sequer comparáveis em termos de população.
O aumento do poder do sistema alemão sugere que EUA e Alemanha estão em trilha de conflito.
OB: A integração da população ucraniana pelo sistema alemão representaria um salto qualitativo nesse desequilíbrio dinâmico. É população numerosa, mas pobre e que produz pouco...
ET: Sim, mas anexar pobres geograficamente contíguos e politicamente controláveis, num mundo globalizado, sedento de mão de obra a baixo preço, sim, pode ser boa vantagem. Daqui em diante nosso mundo será cada vez mais pós-democrático e desigual. Contém portanto virtualidades de expansão em zonas nas quais os salários sejam muito baixos. E a vantagem da Ucrânia para o novo império alemão é, precisamente, que a Ucrânia não existe, é dupla, tripla, é um sistema em desintegração. Na realidade, a Ucrânia nunca existiu como entidade nacional que funcionasse corretamente. É um falso estado, agora em falência.
A prova fundamental da incapacidade do estado na Ucrânia, e disso pouco se fala, é o papel que desempenharam os líderes do oeste da Ucrânia, da periferia. Ficamos indignados, contam-se os deputados, os ministros, mas os ucranianos do oeste, no conjunto, representam nada, ou bem pouca coisa. O que chama a atenção é a inação dos ucranianos do centro do país, os que falam ucraniano, que não apreciam muito os russos, que, na origem, eram da religião ortodoxa, mas que não são atraídos pela extrema direita.
O crescimento do poder do oeste da Ucrânia mostra até que ponto a Ucrânia central, majoritária, está atomizada e incapaz de organizar-se, pré-estatal. A confrontação que se trava entre a extrema direita ucraniana e os pró-Rússia do leste da Ucrânia evidencia a inexistência histórica do país.
Os ucranianos do oeste querem aderir à Europa. É completamente normal para eles: por que movimentos de extrema direita que têm uma tradição de colaboração com a Alemanha nazista se recusaria a aderir a uma Europa sob controle alemão? Isso posto, a Alemanha ainda não realizou esse excepcional ganho ucraniano. A partilha, ou, antes, a guerra, está só começando.
Para os ucranianos do centro do país, creio que a questão ainda não está resolvida: o sistema vai continuar a desintegrar-se: o PIB vai contrair-se, a situação vai agravar-se, e penso que aí está a verdadeira razão pela qual os russos têm-se mostrado tão prudentes, absolutamente resistentes à guerra, e, ao contrário do que se ouve dizer, sem nenhuma vontade de anexar a Ucrânia.
A Rússia não teme sanções ocidentais. Mas absolutamente não deseja ser odiada na Ucrânia central. A Ucrânia está desconfiada da Rússia na sua massa central no estágio atual, mas é preciso reconhecer que o russos tem notável capacidade, historicamente comprovada, para jogar com o espaço e o tempo.
Depois de dois anos de serem tratados pela Europa alemã, o que pensará a população de Kiev? Pode acontecer até que desejem voltar na direção de Moscou. Sistema em processo de desintegração não adere a nada; só continua a desintegrar-se.
OB: Voltemos à potência global do sistema norte-americano, que está tão longe da Ucrânia e portanto tem baixa capacidade para se beneficiar da integração-desintegração dentro do “sistema ocidental”.
ET: “Sistema americano”, segundo Zbigniew Brzezinski, é ter os EUA no controle das duas nações industriais da Eurásia, a saber: Japão e Alemanha. Mas isso só funciona na hipótese de os EUA serem claramente superiores em termos de peso industrial [vide tabela adiante].
PARTES DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL MUNDIAL EM 1928 E 2011 (em %)
1928
2011
Estados Unidos
44,80
17,21
Alemanha
11,6
5,7
Reino Unido
9,3
3,2
França
7,0
2,7
URSS/Rússia
4,6
1,9
Itália
3,2
2,8
Japão
2,4
9,1
Total dos 7 países
82,9
43
Fontes: 1928, Arnold Toymbee e colaboradores, “Le Monde”, março de 1939”, Gallimard, 1958; 2011, Banco Mundial
ET: Se você vive no mundo encantado da ideologia hoje dominante, a ideologia de François Hollande, que é a mesma dos anti-imperialistas ingênuos, o bloco ocidental, união de EUA e Europa mais o Japão tutelado, deve e pode conter a Rússia. Se se constrói a hipótese de uma boa entente estratégica, de forte colaboração, o ocidente poderia vencer a economia russa. Pode ser... Mas há também a China, a Índia, o Brasil, o mundo é vasto...
Mas se se adentra ao mundo do realismo estratégico, que vê a realidade das relações de força, sem considerar valores, reais ou míticos, o que se constata é que há dois grandes mundos industriais desenvolvidos, os EUA de um lado e, do outro lado, esse grande novo império alemão. A Rússia é questão secundária.
Temos pois de ter em vista outra coisa nos próximos 20 anos, além do conflito Oriente-Ocidente: o crescimento do poder do sistema alemão sugere que EUA e Alemanha estão na trilha do confronto. É uma lógica intrínseca, baseada nas relações de força e de dominação. Minha opinião é que é irrealista imaginar qualquer entendimento pacífico para o futuro. No estágio em que estamos, ainda se pode reintroduzir a noção de valor. Mas para destacar que, para um antropólogo, realista à sua moda, ou para um historiador da longa duração, EUA e Alemanha não têm os mesmos valores.
Confrontados ao estresse econômico da grande depressão, os EUA, país da democracia liberal, produziu Roosevelt; a Alemanha, país de cultura autoritária e desigualitária, produziu Hitler. A fé dos norte-americanos na igualdade é, sem dúvida, fé muito relativa. Os EUA são o país líder no aumento das desigualdades econômicas – e, isso, sem falar da segregação racista contra os negros, problema que está longe de superado, como testemunham as tragédias de Ferguson. Mas também são, no estágio atual, líderes na tentativa de construir um mundo unificado com populações de origens muito diversas. Nesse sentido, a eleição de Obama ainda tem forte peso simbólico, apesar da fadiga do segundo mandato.
Se se considera só o conjunto de cidadãos da Alemanha, pode-se dizer que o aumento das desigualdades econômicas permanece razoável, muito inferior ao que se observa no mundo anglo-norte-americano. Mas, se se observa o sistema alemão na sua globalidade europeia, integrando os baixos salários da Europa do leste e a compressão dos salário do sul, pode-se identificar um sistema de dominação desiqualitária muito mais forte, em gestação. A igualdade que resta só concerne ao corpo de cidadãos dominantes – alemães.
Retomo aqui o conceito de ciência política do antropólogo belga Pierre van den Berghe: a democracia Herrenvolk, expressão que significa “democracia do povo dos senhores”. Ninguém precisa pular de indignação. Essas palavras não farão explodir o planeta. Recentemente, eu disse exatamente o que estou dizendo aqui, numa entrevista ao jornal alemão Die Zeit.
No início, Pierre van den Berghe aplica a esse conceito de democracia étnica à África do Sul doapartheid, onde existia um corpo de cidadãos iguais, que funcionava perfeitamente bem segundo regras liberais e democráticas, mas cuja liberdade e democracia só se mantinham porque havia dominados. Acontecia o mesmo nos EUA, na época da segregação racista: igualdade interna dentro do grupo branco, sempre assegurada pela dominação exercida sobre indígenas, negros e latinos.
Também se pode descrever Israel como “democracia Herrenvolk”. O que existe de coesão e de liberdade na democracia israelense é assegurado pela existência da massa de árabes discriminados como inimigos.
Se tivesse de descrever a Europa atual, se tivesse de comentar no plano político o mapa econômico, eu diria que a Europa, ou o Império Alemão começam a tomar a forma geral de uma “democracia Herrenvolk”, tendo, no centro, uma democracia alemã reservada aos alemães dominantes, e, em torno deles, toda uma hierarquia de populações mais ou menos dominadas, cujos votos já não têm importância alguma.
Por esse modelo compreende-se melhor por que, quando se elege um presidente na França, nada acontece. Porque ele já não tem poder algum; especialmente sobre o sistema monetário. Estamos então com uma democracia na qual a liberdade de imprensa, de opinião e outras são perfeitamente respeitadas, na qual não há problema algum, mas na qual, fundamentalmente, a estabilidade do sistema depende da solidariedade subconsciente dentre do grupo dos dominantes.
Na Europa que parece estar em construção, os alemães podem ser vistos como os brancos nos EUA da segregação racista. Hoje, a desigualdade política é evidentemente mais forte no sistema alemão, que no sistema norte-americano. Os gregos e os demais não podem votar nas eleições para o Bundestag, embora negros e latinos possam votar nas eleições para presidente e para o Congresso norte-americano. O Parlamento europeu é piada. O Congresso dos EUA, não.
OB: Depois de tudo que você disse, você acha que deveríamos ser mais vigilantes em relação à Alemanha?
ET: É verdade que sou pessimista. A probabilidade de que a Alemanha saia-se bem diminui todos os dias. Já está muito fraca. A cultura autoritária alemã gera uma instabilidade psíquica sistêmica dos dirigentes, quando estão em situação de dominação – o que nunca mais aconteceu depois da guerra. A frequente incapacidade histórica deles, quando estão em situação de dominação, para imaginar um futuro pacífico e razoável para todos reemerge também todos os dias, sob a forma de uma mania de exportar. E acrescento também, para esses dirigentes, a interação com o absurdismo polonês e com a violência ucraniana. Infelizmente, não vejo o destino da Alemanha como completo desconhecido...
E como os alemães vão sair-se mal? A média de idade ou a ausência de aparelho militar pode servir como freio no processo, mas o que se constata é, a cada semana, mais uma radicalização na postura dos alemães. Pouco caso com os ingleses, desprezo pelos americanos, desavergonhada visita de Merkel a Kiev. A relação com os franceses, cuja servidão voluntária é essencial para o controle da Europa, será reveladora.
Mas já a conhecemos. Com o negócio da venda dos Mistral à Rússia: os dirigentes alemães pedem que os franceses liquidem o que lhes resta de indústria militar. A cultura alemã é desigualitária, o que torna difícil a aceitação de um mundo de iguais. Quando se sentem mais fortes, os alemães suportam muito mal qualquer recusa, dos mais fracos, a obedecer-lhes. Quando pobres que se recusam a obedecer-lhes, a recusa é percebida como não natural, não razoável.
Na França é, antes, o contrário disso. A desobediência é valor positivo. Convivemos com a desobediência, é parte do charme francês, porque existe também na França um misterioso potencial de ordem e de eficácia.
A relação que os EUA mantêm com a disciplina e a desigualdade é complexa de outro modo, e exigiria páginas e páginas de análise. Resumindo, saltemos à constatação: a relação disciplinada inferior-superior de tipo alemão dar-se-ia mal por lá.
A cultura anglo-saxônica não é igualitária, mas é verdadeiramente liberal. Iguais, desiguais determinam-se do mesmo modo. A diferença razoável que as famílias fazem entre irmãos levou à noção de diferença razoável entre indivíduos, entre povos. Essa é a razão do sucesso do modelo norte-americano: a cultura anglo-norte-americana pode administrar razoavelmente as diferenças internacionais.
Ao final, é forçoso constatar que os dois blocos – o norte-americano e o alemão – são antagonistas por natureza. Combinam todos os elementos geradores de conflitos: ruptura do equilíbrio econômico bruto, diferença de valores. Quanto mais depressa a Rússia saia do jogo, quebrada ou marginalizada, mais depressa essas diferenças se manifestarão.
Em minha opinião, a verdadeira questão histórica atual – e que ninguém está levantando – é a seguinte: os norte-americanos aceitarão essa nova realidade de uma Alemanha que os ameaça? E no caso de resposta afirmativa: quando?
OB: Quando você profetiza um conflito entre a nação norte-americana e o novo império alemão, você tem certeza de sua profecia?
ET: Claro que não. Ampliei o campo de prospecção. Descrevo um futuro possível dentre outros futuros possíveis. Outro futuro possível seria uma consolidação do grupo Rússia-China-Índia num bloco que se oponha ao bloco euro-norte-americano. Mas esse bloco euroasiático só poderia funcionar se o Japão aderisse, o único capaz de pôr o bloco no mesmo nível tecnológico em que está o ocidente. Mas para que lado penderá o Japão? Por enquanto, é mais leal aos EUA que à Alemanha. Mas pode cansar-se dos velhos conflitos ocidentais. O choque atual paralisa sua aproximação com a Rússia, completamente lógica para o Japão, do ponto de vista energético e militar, elemento importante do novo curso político que o novo primeiro-ministro japonês Abe imprimiu ao país. É um risco para os norte-americanos, que deriva na nova rota alemã agressiva.
OB: Assim sendo há vários futuros possíveis, mas não uma infinidade deles. Talvez quatro, cinco...
ET: Pus-me a ler ficção científica para desobnubilar o cérebro e abrir o espírito. Recomendo vivamente exercício desse tipo aos nossos governantes, os quais, sem saber para onde vão, continuam a marchar depressa e com passo decidido.
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Notas dos trtadutores
[1] Expressão de Condoleeza Rice em 2003 (The Economist).
[3] “Império Alemão” versus   EUA 1960-2013: População / “Império Alemão”  versus  EUA: PIB real / “Império Alemão”  versus   EUA: Valor industrial agregado
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[*] Emmanuel Todd (nasceu em 16/5/1951) é  cientista político, demógrafo, historiador, sociólogo e ensaísta francês. Ele se formou no Institut d'Etudes Politiques de Paris e obteve doutorado em História pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). Formou-se Engenheiro de Pesquisas no Instituto Nacional de Estudos Demográficos (INED); suas investigações em ciências humanas levaram a acreditar que os sistemas familiares têm um papel fundamental na história, na formação religiosa e ideologias políticas.
Sua tese de doutorado discorre sobre a antropologia da família, explorando esses conceitos que buscam elucidar a história através da interpretação dos elementos característicos de cada família.
Em 1976, previu o “colapso iminente” do comunismo europeu oriental na obra “La chute finale: Essais sur la décomposition de la sphère Soviétique”.



Tradução: Vila Vudu
Acesso via: Castor Filho


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Acesse o artigo original em francês no site Les Crisis:

Acesse a versão do artigo traduzida para o inglês no site Les Crisis:

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