terça-feira, 26 de julho de 2016

Desafios para o Brasil diante das disputas geopolíticas globais

Carta Capital

Economia

Entrevista - Ronaldo Fiani

“Brasil se vê distante da guerra geopolítica, mas está no centro”

por Carlos Drummond publicado 25/07/2016 10h27, última modificação 25/07/2016 18h41 
 
Em meio à discussão sobre o pré-sal, o País ainda se baseia na oposição simplista entre alinhamento aos EUA e antiamericanismo, diz economista da UFRJ.





O Brasil estaria na iminência de entregar ao capital externo o seu patrimônio petrolífero incomum e a empresa com a melhor tecnologia do mundo para explorá-lo, acusa a oposição ao governo interino de Michel Temer.

O projeto do senador licenciado e ministro das Relações Exteriores José Serra, de eliminar a participação obrigatória da Petrobras no pré-sal, seria o começo do retrocesso, apontam vários críticos.Os problemas não terminam aí.

Falta ao País uma estratégia diante do confronto geopolítico global, no qual o acesso ou o bloqueio a fontes de energia é um elemento central, ensina o professor de Economia Ronaldo Fiani, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Mais grave ainda: por possuir as reservas da camada do pré-sal, a tecnologia de prospecção e extração de petróleo em águas profundas e ter a China como sócia em uma área de influência dos Estados Unidos, o Brasil está na linha de impacto do megaconflito entre Ocidente e Oriente.

Precisamente, o oposto do sugerido pelo senso comum, de que nada disso nos afeta por ser muito longínquo. Polarizado entre o pró e o antiamericanismo simplistas, evidência da captura das elites pelo confronto geopolítico, o País não conta com um líder como Getúlio Vargas.

Hábil negociador, soube tirar partido de outro conflito global, o da Segunda Guerra Mundial, em benefício do interesse nacional. O choque geopolítico mundial, minimizado ou sequer percebido por aqui, é detalhado pelo professor da UFRJ na entrevista a seguir:


CartaCapital: O País corre o risco imediato de perder o poder sobre o pré-sal, por conta da escalada acelerada pelo projeto do senador licenciado e Ministro das Relações Exteriores José Serra, de acabar com a participação obrigatória da Petrobras na reserva de petróleo e gás mais produtiva do mundo. É importante manter essa obrigatoriedade?

Ronaldo Fiani: Sim, mas não é suficiente.


CC: Por que?

RF: No debate político e na maior parte da mídia, a questão é apresentada como se fosse um dilema entreguismo versus soberania nacional. É bem mais complicado do que isso, principalmente quando se considera que a Petrobras está em campos do pré-sal associada com empresas chinesas que já investiram 10 bilhões de dólares na operação. Isso em uma área de influência dos Estados Unidos. É razoável, portanto, avaliar o problema num quadro mais amplo, como um reflexo, na questão do pré-sal e na América do Sul, do confronto geopolítico maior e mais estrutural que nós estamos vivendo.


CC: A abordagem predominante é de encarar o pré-sal como um assunto estratégico de suprimento de energia.

RF: É bem mais abrangente que isso. Energia, geopolítica guerra sempre estiveram ligadas. A expressão mais direta e fundamental de poder dos Estados é a capacidade de fazerem guerra. A partir do século 19, houve uma mudança dramática. Com a revolução industrial, começou-se também a fazer guerra em escala industrial. A capacidade de o estado projetar poder passou a depender, essencialmente, da sua produção de armas, munição, navios. Para movimentar essa máquina, há necessidade de energia em quantidade crescente.

No século 20, o próprio ato de guerrear passou a consumir energia de forma fantástica. Foi quando o primeiro-ministro Winston Churchill decidiu mudar o combustível da marinha real britânica, a maior do mundo, de carvão para petróleo.

Ele tomou essa decisão porque os navios movidos a óleo eram mais rápidos e, principalmente, podiam ser abastecidos em alto mar, coisa que no navio movido a carvão era praticamente impossível. Além disso, exigia uma mão de obra menor só para cuidar do combustível. No navio de guerra usual, muito da mão de obra era para cuidar do carvão. A substituição, portanto, liberava soldados para cuidar dos armamentos.

CC: E a marinha ganhava agilidade.

RF: A possibilidade de reabastecer em alto-mar deu uma mobilidade fantástica para a marinha britânica, e depois à dos Estados Unidos, mas criou um problema. A Grã-Bretanha tinha reservas de carvão no seu próprio território, mas naquela época ainda não tinha petróleo, que estava na Ásia Central e depois, no Oriente Médio. Isso criou a questão geopolítica na energia. Porque se você corta as fontes de combustível, paralisa uma máquina de guerra praticamente de imediato.

Pearl Harbour aconteceu porque os Estados Unidos, que produziam seis sétimos de todo o petróleo consumido na Segunda Guerra Mundial, tentaram impor um embargo de petróleo ao Japão.

A decisão de Hitler, considerada um grave erro por analistas menos informados sobre a questão energética, de dirigir as suas tropas para Stalingrado ao invés de ir direto a Moscou, ocorreu porque as forças alemãs precisavam desesperadamente do petróleo do mar Negro e do Cáucaso para se deslocar e resistir em uma guerra prolongada. A substituição do combustível aumentou muito a capacidade da Grã-Bretanha, e depois dos Estados Unidos, de projetar poder naval.

CC: O acesso à energia é, portanto, crucial.

RF: Sim, mas para fazer guerra hoje, com a indústria moderna, em grande escala, não basta um superávit permanente de energia, é preciso também negar ao inimigo o acesso às fontes de energia. O confronto geopolítico contemporâneo é um gigantesco xadrez que inclui a América do Sul, África Ocidental, Ásia, e consiste na manipulação de fontes de energia, através da construção de oleodutos e gasodutos que integrem países, permitam ter acesso a fontes de energia e eventualmente negá-lo a outros países, hostis.












CC: Quais são os elementos principais da geopolítica nos dias atuais?

RF: A geopolítica no século 19 visava, basicamente, garantir as rotas navais, por serem o meio de expansão comercial no globo. Na primeira década do século 20, o geógrafo Halford Mackinder, na Inglaterra, e depois o estrategista Nicholas J. Spykman, nos Estados Unidos, perceberam que o poder naval não era mais suficiente.

O desenvolvimento do transporte terrestre, especialmente das ferrovias, podia se tornar uma base de poder muito grande, por permitir o transporte de tropas e armamentos mais rápido que os navios.
E isso se tornava particularmente grave porque, face a possibilidade de integrar Ásia e Europa, fatalmente Grã-Bretanha, Estados Unidos e outros países seriam empurrados para a margem do sistema global. Juntar Ásia com Europa resulta na maior massa de terra, recursos e população do planeta, a chamada Eurásia.

Daí porque toda a estratégia dos Estados Unidos no pós-guerra seria exatamente conter qualquer poder que busque integrar Ásia e Europa. A sabedoria da China, carente em energia, foi usá-la para se expandir


CC: Qual a importância da China nesse contexto?

RF: É crucial porque, ao contrário dos demais estados e forças políticas, não busca integrar Ásia e Europa politicamente, mas economicamente, através das famosas rotas da seda, eixos de infraestrutura de comunicação, transporte e, principalmente, energia. Há uma série de desdobramentos extremamente importantes. O primeiro tem a ver com a Rússia, essencial no projeto chinês de integrar Ásia e Europa. Decorre daí a escalada de tensão entre a Otan e a Rússia. Sem o apoio desse país, não é possível fazer aquela integração, por causa da posição geoestratégica que a Rússia desfruta nessa união. Na América do Sul, os investimentos chineses buscam integrar os países à rede de interesses em construção para a Ásia e a Europa, com a mesma estratégia. Investe-se em energia, transporte, inclusive há o projeto da estrada de ferro proposta pela China para ligar o Brasil ao Pacífico.


CC: Por que a integração de Ásia e Europa através da China é tão importante?

RF: A maior massa de terra é a junção de Europa e Ásia. Para controlar a Eurásia, é preciso dominar o seu centro, a Ásia Central. Quem fizer isso, controlará o planeta. Essa é a visão de Mackinder. Grã-Bretanha e, de certa forma, Estados Unidos têm uma preocupação muito grande em impedir que outro poder político domine a Ásia Central.

Entretanto, todas as tentativas nesse sentido fracassaram no século 20, por se tratar de um mosaico de culturas e povos que dificulta muito a unificação política da região. O que os chineses estão fazendo agora? Não estão unificando politicamente, mas economicamente. Eles constroem, neste momento, uma monumental infraestrutura de transporte e telecomunicações para ligar a China à Europa, passando pela Ásia Central. Com isso, a energia se transformou num instrumento para controlar aquilo que Mackinder considerou o centro da política no tabuleiro internacional.

A grande percepção da China foi transformar aquilo que em princípio seria uma debilidade da sua estratégia de potência, que é o fato de não dispor de fontes de energia, em um instrumento para unificar e projetar o seu poder economicamente sobre o centro do tabuleiro da Eurásia, com a ajuda inestimável e muito bem-vinda da Rússia. O Brasil se vê distante da guerra geopolítica, mas está no seu centro


CC: Como o Brasil se posiciona no jogo geopolítico?

RF:
Essa é uma questão extremamente difícil, porque a inserção do País é muito problemática. O movimento da China para controlar o centro da Eurásia economicamente, inclusive importando energia, não é observado por Estados Unidos, União Europeia e Japão de forma tranquila. Ao contrário, determina um aguçamento do conflito, como se observa na Ucrânia, na Macedônia, na Síria, reflexos do esforço das chamadas potências ocidentais para afastar a possibilidade de unidade entre Ásia e Europa mediada pela China. São conflitos em torno da área de influência de Rússia e China.

É importante entender que a parceria entre Rússia e China não é apenas uma questão de conveniência de dois países que se sentem ameaçados. Ela é geoestratégica, porque a condição necessária para os chineses alcançarem a Europa de modo eficaz é o apoio da Rússia, influente na Europa Central. Do mesmo modo que o respaldo da China é indispensável para a Rússia enfrentar a Otan.

Desde o ano passado, uma ferrovia une Yiwu, próxima a Xangai, a Madri, na Espanha, para transporte de carga em tempo muito inferior ao dos navios. Esse é o pesadelo dos países que perderiam poder em escala global se essa articulação realmente acontecer. O Brasil está exatamente no meio desse conflito entre Estados Unidos e seus aliados e China e Rússia e seus aliados.


CC: Por que?

RF: Porque a questão não é apenas garantir oferta de energia para a capacidade de um país projetar poder, é principalmente negar ao outro que o confronta o acesso a essas fontes de energia.

E nós temos não só grandes reservas no pré-sal como uma empresa brasileira com capacidade de explorar essas reservas, o que nos dá uma notável autonomia para aproveitar esse recurso, e essa empresa se encontra associada às empresas chinesas de petróleo CNOOC e CNPC.

Portanto estamos inseridos num espaço tradicionalmente de influência norte-americana, com uma empresa com capacidade tecnológica de explorar o pré-sal, associada a uma empresa chinesa. Estamos exatamente, digamos assim, na linha de confronto. A situação é agravada ainda mais pelo fato de termos um projeto de submarino nuclear com capacidade de fechar o corredor do Atlântico, por ser muito mais rápido que o convencional.

Há uma crença generalizada no País de que nós estamos fora desse confronto entre Oriente e Ocidente. Devido às reservas energéticas e as matérias-primas que temos, estamos diretamente na linha de frente desse conflito.

A posição oposta, de que isso tudo não nos diz respeito por estar muito longe, é profundamente equivocada e pode ter consequências gravíssimas. E isso me preocupa muito porque eu não vejo por parte dos políticos, das lideranças políticas, e mesmo da maior parte dos intelectuais brasileiros, a percepção desse quadro. Não temos uma liderança extremamente hábil como foi Getúlio Vargas

CC: Seria melhor fazer parceria com a China ou os Estados Unidos? 

RF: Examinada de perto, nenhuma das duas parcerias atende, neste momento, às necessidades do Brasil. O modelo chinês de desenvolvimento é muito parecido com o padrão britânico do século 19, no sentido de que a China consome matérias primas e exporta produtos industrializados e nós exportamos matérias-primas e importamos manufaturados chineses.

Segundo especialistas em comércio exterior, a economia brasileira tem-se tornado progressivamente competidora com a economia norte-americana, por exemplo em soja e automóveis. Fazer exportações significativas desses produtos aos EUA parece pouco provável, pois eles são grandes produtores. Não há, portanto, uma relação de complementaridade. Um alinhamento automático, quer a um lado, quer a outro, provocaria danos irreversíveis na economia nacional.


CC: O que o Brasil deveria fazer nesse contexto?

RF: Falta ao País a formulação de uma estratégia frente a esse confronto geopolítico global. Não percebo, entretanto, em nenhuma força política, a formulação dessa estratégia.

CC: O contexto político-econômico do País é uma complicação adicional.

RF:
O sistema político do País está se desintegrando e não há nenhuma preocupação em preservar as organizações e instituições. A partir daí, o que vai acontecer é absolutamente imprevisível.

CC: No período de Getúlio Vargas, o País soube tomar partido do conflito que opunha as forças aliadas e o chamado eixo.

RF: Exatamente. Entre os anos 1930 e hoje, claro que são situações historicamente muito diferentes, mas há um traço comum: tanto naquele momento como agora, o mundo vivia um confronto geopolítico. Só que naquele período tivemos uma liderança extremamente habilidosa, que era o Getúlio Vargas (nota da redação: na Segunda Guerra Mundial, Vargas ameaçou aliar-se ao Eixo Alemanha-Japão-Itália e com isso obteve dos Estados Unidos, através do Eximbank, financiamento para construir a Usina de Volta Redonda, fundamental para a constituição da indústria no Brasil).

Hoje, nós não temos uma liderança semelhante. Como é que o País fica? Ao invés de se pensar uma estratégia, há uma captura das elites políticas no Brasil por esse confronto geopolítico. Há uma polarização antiamericanismo versus alinhamento automático com os Estados Unidos, evidência de que ocorreu uma captura dos agentes pela própria dinâmica do confronto geopolítico. É extremamente preocupante por serem duas saídas muito simplistas.

Na verdade, o Brasil não pode prescindir nem dos Estados Unidos, dada a posição que esse país ocupa no continente e o fato de ainda ser a maior potência global, nem da China, que hoje, de certa forma, sustenta o comércio exterior brasileiro. É preocupante não se discutir alternativas. Há uma captura pela mesma dinâmica de polarização do confronto global. Assim vai ser difícil conferir à economia brasileira o dinamismo necessário para sustentar cerca de 200 milhões de habitantes. A nossa afinidade está muito mais na África do que na América andina.

CC: Como o senhor vê esse movimento do Ministério das Relações Exteriores que pode resultar no fechamento de representações na África?

RF: Alguns dizem que o Brasil é o país mais ocidental da África, em tom crítico. Não vejo necessariamente como crítica ou elogio. Houve uma dinâmica muito forte de expansão de representações brasileiras na África com base em um desejo de ampliar a participação e a credibilidade do País no cenário global, torná-lo um player efetivo nas relações internacionais. No quadro de confronto geopolítico mencionado, essa perspectiva não é errada, mas precisa ser situada em um contexto.
Hoje a economia brasileira não encontra solução no alinhamento automático em nenhum dos dois lados do confronto global e é necessário estabelecer vínculos comerciais com países que são também uma alternativa para o avanço da nossa economia. Essas representações devem ser avaliadas da perspectiva daquilo que a relação entre os países pode gerar para dinamizar a economia brasileira. Visar simplesmente a projeção do Brasil no cenário internacional, num clima de confronto, é muito difícil.
CC: Qual é a relação entre geopolítica e a questão da energia?

RF:
Um dos enganos mais comuns é considerar a energia como uma questão isolada. Energia, ao menos desde o início do século 20, é uma questão geopolítica. Pensá-la isoladamente como um problema em si leva a não perceber que a questão energética sempre estará inserida num contexto geopolítico e será determinada por injunções geopolíticas, ainda mais no momento atual.

CC: Como ficam a América Latina e a África no conflito geopolítico descrito?

RF:
Essa é uma pergunta que também me obriga a ir contra a crença geral. Muito da geopolítica brasileira foi pensada numa espécie de extrapolação do Tratado de Tordesilhas. Como nós empurramos a linha de Tordesilhas para o Oeste, o destino brasileiro seria os Andes, seria chegar no Pacífico. É possível ver uma retomada disso naquele projeto mencionado de ferrovia ligando o Brasil ao Pacífico e chegando no Peru, que os chineses estão propondo. Mas é importante ter uma outra dimensão, que é social e cultural, da geopolítica.

Na verdade, nós temos profundas, fortes e muito sólidas raízes africanas. A nossa afinidade está muito mais na África do que na América andina. Na verdade, nós temos que nos orgulhar disso, porque a nossa afinidade está na África, a nossa facilidade de diálogo está na África. Então, novamente, as potências que estabelecerem uma aliança com o Brasil terão um pé na África.

Daí vem também uma outra dimensão que não tem necessariamente a ver com energia, tem mais a ver com história e geografia, da nossa importância geopolítica nesse conflito, que é o fato que o Brasil é uma ponte para a África.
Portanto controlando este lado do tabuleiro, você cria afinidades com outro lado do tabuleiro também. Ajuda nesse movimento. Além, é claro, de você controlar o Atlântico Sul.

CC: Todos esses fatores, conclui-se da sua análise, tornam a questão energética uma arma geopolítica.

RF: E é por isso que hoje pensar a questão energética do País como um problema única e exclusivamente econômico, como um problema de ‘como fica o custo de extração do pré-sal com a manipulação de preços dos sauditas’, é pensar de uma forma totalmente errada. Até porque, como os sauditas estão mostrando, energia sempre foi e sempre será, uma arma de luta política e geopolítica.
O que mais me preocupa neste momento é que não parece existir, nem das lideranças políticas nem na intelectualidade de uma forma geral, a percepção da gravidade do posicionamento brasileiro nesse conflito geopolítico internacional. Não adianta o domínio do pré-sal se não houver uma estratégia definida a partir da percepção desse contexto.

FONTE: http://www.cartacapital.com.br/economia/201cbrasil-se-ve-distante-da-guerra-geopolitica-mas-esta-no-centro201d

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O Pré-Sal e a Petrobrás no centro da geopolítica do golpe no Brasil

 
Carta Maior, 19/07/2016  - Copyleft

Petrobras: o golpe da privatização

Se comprar a Petrobrás já significa um grande negócio em qualquer circunstância, essa avaliação fica ainda mais tentadora em uma conjuntura de crise.


Paulo Kliass *

A conjunção da crise política e da crise econômica ao longo dos últimos tempos tem contribuído para provocar uma preocupante paralisia nas atividades do conjunto do setor público brasileiro. Em particular, ganha destaque o caso de nossa maior empresa estatal, a Petrobrás.

As denúncias e as investigações associadas à Operação Lava Jato somaram-se ao aprofundamento das dificuldades globais enfrentadas pelo setor petrolífero. A maior preocupação dos que operam no setor vem do movimento empreendido pelos países produtores, liderados pela Arábia Saudita, forçando a redução do preço dessa importante “commodity” nos mercados mundiais. Isso significou uma perda significativas de suas receitas.

No caso específico do Brasil, além disso, pesam negativamente as medidas envolvendo as empresas da construção civil e demais fornecedoras e/ou parceiras da Petrobrás. Esse quadro geral de certo imobilismo na tomada de decisões estratégicas compromete a gestão do presente e prejudica muito também as opções de investimento futuro. Com isso, estamos reduzindo nos dias de hoje a dimensão da empresa de amanhã.

A profunda politização do debate em torno da empresa acabou por ser refletida em uma campanha orquestrada pelo financismo e pelos grandes meios de comunicação, com o objetivo de desgastar os governos Dilma e Lula. Além disso, esse movimento tem por objetivo explícito a redução da credibilidade da empresa e a intenção de promover a desvalorização do próprio patrimônio da Petrobrás.

Contra o catastrofismo: recorde de produção.

No entanto, a força da realidade acaba jogando contra as tentativas liquidacionistas. As informações oferecidas pelas áreas operacionais da empresa insistem em desmentir as versões dos arautos do catastrofismo, sempre de plantão. O fato é que, não obstante a crise financeira indiscutível e as dificuldades enfrentadas, a Petrobrás continua batendo todos os recordes da produção pela exploração de suas reservas.
 



O relatório de junho traz as estatísticas a respeito da produção de óleo e gás, anunciando que a empresa alcançou um novo valor máximo em sua atividade exploratória. No período de um mês, verificou-se uma produção média de 2,9 milhões de barris de óleo equivalente por dia (petróleo e gás natural). Com isso, foi ligeiramente superada a cifra anterior de agosto de 2015, quando a marca havia sido de 2,88 milhões. Outro aspecto relevante é que mais de 30% dessa quantidade vêm das fontes do Pré Sal.
 

Assim, as perspectivas futuras de nossas reservas são bastante promissoras, uma vez que a cada novo período entram em operação novas instalações implantadas nessa estratégica região das águas profundas de nossa costa. Ainda que a redução atual dos preços do barril não estimule muito novos investimentos nesse tipo de jazida, é inegável que a demanda futura mundial por essa fonte energética ainda assegura uma receita imprescindível para o futuro de nosso País.

OPEP reconhece a produção do Brasil.

No entanto, toda cautela é necessária para operar em mercado tão marcado pela especulação e pela volatilidade. Em 2003, por exemplo, o barril estava na casa de US$ 30. Iniciou uma escalada de elevação, que foi muito acelerada pela demanda chinesa e associada ao crescimento da economia em escala global. Chegou a superar a marca dos 130 dólares às véspera da crise de 2008. Para os que acompanhavam de perto o setor, tratava-se de uma bolha especulativa nítida e clara. Tal tendência altista não seria sustentável no tempo. Com a redução do ritmo da economia mundial, os preços baixaram e agora se situam no patamar de US$ 45.

De qualquer forma, essa tendência de médio prazo do aumento da importância brasileira é reconhecida até mesmo pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). A entidade reconhece em seu último Relatório mensal que o Brasil será o país que promoverá o maior crescimento da produção em 2017, considerando-se o universo de países que não pertencem ao cartel. E o próprio documento credita às jazidas do Pré Sal esse importante acréscimo da oferta prevista do produto.

Ora, frente a um quadro como esse, beira à irresponsabilidade o discurso a favor da privatização da empresa ou de alguns de seus setores. É muito comum ouvirmos as referências - proferidas pelos mesmos “especialistas” que defendem a ortodoxia e o austericídio - a uma suposta inviabilidade inconteste da estatal. “A Petrobrás está quebrada!”, afirmam movidos por um sentimento aguerrido e difuso, que oscila entre o prazer e o desejo.

Petrobrás tem problemas, mas não está “quebrada”.

É inegável que a empresa acumulou um volume de dívidas bastante elevado ao longo dos últimos anos, em razão dos investimentos realizados. No entanto, seu valor patrimonial supera em muito esse tipo de compromisso com credores e ela tem plena capacidade de cumprir com tais obrigações. Basta um pouco de tempo e a vontade de iniciar um processo de replanejamento de suas atividades de forma integrada. Aliás, esse quadro atual de dificuldades econômico-financeiras é uma característica comum que afeta todas as gigantes do mundo petrolífero, em razão dessa mudança de patamar dos preços do óleo.

Algumas poucas são as certezas que se pode ter nessa conjuntura de insegurança e dúvidas quanto à capacidade de recuperação da economia mundial e de busca de fontes alternativas de energia. Mas uma delas é que a privatização de empresas públicas revela-se como enorme equívoco em termos de opção de políticas públicas. Tanto mais quando se trata de uma empresa de sucesso como a Petrobrás, que garante sozinha uma parcela importante de nosso PIB, que apresenta um expressivo efeito multiplicador para outras áreas e que influencia de forma decisiva nossa capacidade de inovação tecnológica.

A Petrobrás é reconhecida pela população como um patrimônio nacional, em razão das conquistas que ela apresentou ao longo de seus mais de sessenta anos de história. Talvez essa seja uma das razões que tem impedido que ela venha a ser objeto de aventuras liberalóides mais radicais. Afinal, todos sabemos muito bem os múltiplos interesses que se apresentam para uma longa lista de conglomerados desejosos de participar de qualquer processo privatizante.

Se comprar a Petrobrás já significa um grande negócio em qualquer circunstância, essa avaliação fica ainda mais tentadora para o capital em uma conjuntura de crise e recessão, tal como vivemos agora. Isso porque os preços dos ativos patrimoniais tendem a ser jogados lá para baixo e a privatização sai ainda mais em conta do que as conhecidas negociatas do passado nem tão longínquo assim. Basta que nos lembremos da Vale do Rio Doce, das empresas de telefonia, das empresas de eletricidade, do parque das siderúrgicas e muito mais.

Golpe da privatização: fatiamento e cocontrole.

O novo presidente da empresa indicado por Michel Temer tomou posse há poucas semanas atrás. Depois de ter ocupado cargos de primeiro escalão durante o governo de FHC, Pedro Parente foi prestar seus serviços junto a grandes grupos do capital privado. Agora está à frente de uma empresa muito visada pela sanha privatista do grupo que espera a confirmação do afastamento de Dilma para ver o anúncio daquilo que o presidente interino já chamou de “medidas impopulares”.

Mas por enquanto Parente revela certa “prudência”, vai comendo pelas beiradas. Em recente entrevista, afirmou ser contrário à “privatização total” da Petrobrás, pois esse tema seria ainda um “dogma” na sociedade brasileira. Assim, ele sugere uma estratégia mais cautelosa e que ofereceria menos resistência a esse tipo de iniciativa. Ele promete fatiar a empresa e vender para o capital privado alguns de seus ramos de negócios. Seria o caso, por exemplo, da área de distribuição. Além disso, ele começa a articular de forma hábil e inteligente outras formas para a privatização. Dentre elas surge o pomposo nome de “cocontrole”, onde a empresa seria de fato vendida ao setor privado e restaria uma ilusão de alguma forma pública de controle sobre os destinos da mesma. Pura balela!

Finalmente, vale ressaltar a conhecida estratégia de sucateamento deliberado da empresa existente, por meio de contenção de seus investimentos e das iniciativas que fizeram com que ela tivesse se transformado em uma empresa de referência no setor. Esse processo se combina com a tentativa de abertura da exploração do Pré Sal para o capital internacional e a proibição implícita de a Petrobrás aumentar sua presença nesses novos empreendimentos. Deixada à margem das novas operações, ela certamente perderia o fôlego para enfrentar a presença da concorrência dos poderosos conglomerados privados. Todos os novos espaços e blocos seriam generosamente oferecidos às multinacionais, o que representa uma opção explícita pelo processo de privatização.




* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.